História sagrada, historicidade e eternidade

"Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (...). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (...)" | Mais aqui

“Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (…). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (…)” | Mais aqui

“(…) Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o eterno encontro com o mesmo Tempo mítico da origem, santificado pelos deuses, não implicam de modo nenhum uma visão pessimista da vida; ao contrário, é graças a este ‘eterno retorno’ às fontes do sagrado e do real que a existência humana lhe parece salvar-se do nada e da morte.

“A perspectiva muda totalmente quando o sentido da religiosidade cósmica se obscurece. É o que se passa quando, em certas sociedades mais evoluídas, as elites intelectuais se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional. A santificação periódica do Tempo cósmico revela-se então inútil e insignificante. Os deuses já não são acessíveis por meio dos ritmos cósmicos. O significado religioso da repetição dos gestos exemplares é esquecido. Ora, a repetição esvaziada de seu conteúdo conduz necessariamente a uma visão pessimista da existência. Quando deixa de ser um veículo pelo qual se pode restabelecer uma situação primordial e reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, quando é dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico: revela-se como um círculo girando indefinidamente sobre si mesmo, repetindo-se até o infinito. (…)

“A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da época tardia levaram a concepção do Tempo circular aos seus limites extremos. Para citar o belo resumo de H . Ch. Puech: ‘Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao se desenrolar em círculo. Conseqüentemente, todo devir cósmico, assim como a duração deste mundo de geração e corrupção que é o nosso, desenvolver-se-á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclos, no decurso dos quais a mesma realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com uma lei e alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mesma soma de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas também, segundo alguns pensadores do fim da Antiguidade — pitagóricos, estóicos, platônicos —, admite-se que, no interior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, desses aeva, se reproduzem as mesmas situações que se produziram já nos ciclos anteriores e que se reproduzirão nos ciclos subseqüentes – até o infinito. Nenhum acontecimento é único, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo, a condenação e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e anakuklosis, eterno retorno’.

“Quanto às religiões arcaicas e paleorientais, bem como em relação às concepções mítico-filosóficas do Eterno Retorno, tais como foram elaboradas na Índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação importante. Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A idéia do Tempo cíclico é ultrapassada. Iahweh não se manifesta no Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível. Cada nova manifestação de Iahweh na história não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Iahweh contra seu povo, mas não é a mesma que Iahweh exprimira no momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo, o povo escolhido por Iahweh. Assim, o acontecimento histórico ganha um a nova dimensão: torna- se uma teofania.

“O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência .humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Judéia —, mas santificado pela presença do Cristo. Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara — mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia. Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História: já não são fatos que se passaram na origem do Tempo, ‘no começo’. (Acrescentemos porém que para o cristão o Tempo começa de novo com o nascimento do Cristo, porque a encarnação funda uma nova situação do homem no Cosmos.) Em resumo, a História se revela como uma nova dimensão da presença de Deus no mundo. A História volta a ser a História sagrada — tal como foi concebida, dentro de uma perspectiva mítica, nas religiões primitivas e arcaicas.

“O cristianismo conduz a uma teologia e não a uma filosofia da História, pois as intervenções de Deus na história, e sobretudo a Encarnação na pessoa histórica de Jesus Cristo, têm uma finalidade trans-histórica — a salvação do homem.

“Hegel retoma a ideologia judaico-cristã e aplica-a à História universal em sua totalidade: o Espírito universal manifesta se contínua, e unicamente, nos acontecimentos históricos. A História, em sua totalidade, torna- se, pois, uma teofania: tudo o que se passou na História devia passar-se assim, pois assim o quis o Espírito universal. É a via aberta para as diferentes formas de filosofia historicista do século XX. (…) o historicismo é o produto da decomposição do cristianismo: ele concede uma importância decisiva ao acontecimento histórico (o que é uma idéia de origem cristã), mas ao acontecimento histórico como tal, quer dizer, negando-lhe toda possibilidade de revelar uma intenção soteriológica, trans-histórica.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 92 ss.

Imitatio dei: o mito como modelo exemplar


“Destituído de simbolismo religioso, o trabalho (…) torna-se, ao mesmo tempo, ‘opaco’ e extenuante: não revela significado algum, não permite nenhuma ‘abertura’ para o universal, para o mundo do espírito. (…) o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é, pois, uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal.”


 

“O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. ‘Dizer’ um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez ‘dito’, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. (…)

“É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar. (…) Destituído de simbolismo religioso, o trabalho (…) torna-se, ao mesmo tempo, ‘opaco’ e extenuante: não revela significado algum, não permite nenhuma ‘abertura’ para o universal, para o mundo do espírito. (…) Tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por consequência, participa do Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é, pois, uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal. Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos exemplares para seus comportamentos e ações. Em outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real e menos se arrisca a perder-se em ações não-exemplares, ‘subjetivas’ e, em resumo, aberrantes.

“Este é um aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacralidade absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado do mundo. Por esta razão, entre muitos primitivos, os mitos não podem ser recitados indiferentemente em qualquer lugar e época, mas apenas durante as estações ritualmente mais ricas (outono, inverno) ou no intervalo das cerimônias religiosas – numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo.

“Por outro lado, sendo toda criação uma obra divina, e portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia criadora no Mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. A criação faz se por uni acréscimo de substância ontológica. É por isso que o mito que conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas: só ele revela o real, o superabundante, o eficaz. (…) Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma atividade social, econômica, cultural, militar etc.

“(…) A repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo: (1) por um lado, ao imitar os deuses, o homem mantém se no sagrado e, conseqüentemente, na realidade; (2) por outro lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo.

“(…) o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo trans humano, transcendente. Ele só se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos, (…) conservados pelos mitos, pela história das gestas divinas.

“(…) uma tal imitatio dei [“imitação de Deus”] às vezes implica, para os primitivos, uma responsabilidade muito grave. (…) Toda a sua vida religiosa é uma comemoração, uma rememoração. A recordação reatualizada por ritos (portanto, pela reiteração do assassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem deve evitar cuidadosamente esquecer o que se passou in illo tempore. O verdadeiro pecado é o esquecimento: a jovem que, em sua primeira menstruação, permanece três dias numa cabana escura, sem falar com ninguém, comporta-se assim porque a jovem mítica assassinada, tendo se transformado em Lua, fica três dias nas trevas. Se a jovem catamenial infringe o tabu de silêncio e fala, torna-se culpada do esquecimento de um acontecimento primordial. A memória pessoal não entra em jogo: o que conta é rememorar o acontecimento mítico, o único digno de interesse, porque é o único criador. É ao mito primordial que cabe conservar a verdadeira história, a história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reencontrar os princípios e os paradigmas de toda conduta.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 84 ss.

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Assista abaixo ao filme “Tempos modernos”, com sua crítica ao esvaziamento do significado do trabalho, completo:

 

Regeneração pelo regresso ao tempo original

Fieis cristãos ortodoxos participam da Festa das Luzes na Igreja do Santo Sepulcro, na Cidade Velha de Jerusalém | Mais aqui

Fieis cristãos ortodoxos participam da Festa das Luzes na Igreja do Santo Sepulcro, na Cidade Velha de Jerusalém | Mais aqui

“[Com relação às características essenciais do Tempo Sagrado,] (…) dois elementos devem reter nossa atenção: (1) pela repetição anual da cosmogonia, o Tempo era regenerado, ou seja, recomeçava como Tempo sagrado, pois coincidia com o illud tempus em que o Mundo viera pela primeira vez à existência; (2) participando ritualmente do ‘fim do Mundo’ e de sua ‘recriação’, o homem tornava-se contemporâneo do illud tempus; portanto, nascia de novo, recomeçava sua existência com a reserva de forças vitais intacta, tal como no momento de seu nascimento.

“Esses fatos são importantes, pois desvendam-nos o segredo do comportamento do homem religioso em relação ao Tempo. Visto que o Tempo sagrado e forte é o Tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente, o homem esforçar-se-á por voltar a unir-se periodicamente a esse Tempo original. Essa reatualização ritual do illud tempus da primeira epifania de uma realidade está na base de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua reatualização.

“O Tempo de origem por excelência é o Tempo da cosmogonia, o instante em que apareceu a mais vasta realidade, o Mundo. É por essa razão que a cosmogonia serve de modelo exemplar a toda ‘criação’, a toda espécie de ‘fazer’. É pela mesma razão que o Tempo cosmogônico serve de modelo a todos os Tempos sagrados: porque, se o Tempo sagrado é aquele em que os deuses se manifestaram e criaram, é evidente que a mais completa manifestação divina e a mais gigantesca criação é a Criação do Mundo.

“Consequentemente, o homem religioso reatualiza a cosmogonia não apenas quando ‘cria’ qualquer coisa (seu ‘mundo pessoal’ – o território habitado – ou uma cidade, uma casa etc.), mas também quando quer assegurar um reinado feliz a um novo soberano, ou quando necessita salvar as colheitas comprometidas, ou quando se trata de uma guerra, de uma expedição marítima etc. Acima de tudo, porém, a recitação ritual do mito cosmogônico desempenha um papel importante nas curas, quando se busca a regeneração do ser humano. (…)

“Mas a ‘primeira manifestação’ de uma realidade equivale à sua ‘criação’ pelos Seres divinos ou semi-divinos: reencontrar o Tempo de origem implica, portanto, a repetição ritual do ato criador dos deuses. A reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos in illo tempore constitui o calendário sagrado, o conjunto das festas. Uma festa desenrola-se sempre no Tempo original. É justamente a reintegração desse Tempo original e sagrado que diferencia o comportamento humano durante a festa daquele de antes ou depois. Em muitos casos, realizam-se durante a festa os mesmos atos dos intervalos não-festivos, mas o homem religioso crê que vive então num outro tempo, que conseguiu reencontrar o illud tempus mítico. (…)

“Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas. Ao nível das civilizações primitivas, tudo o que o homem faz tem um modelo trans-humano; portanto, mesmo fora do tempo festivo, seus gestos imitam os modelos exemplares fixados pelos deuses e pelos Antepassados míticos. Mas essa imitação corre o risco de tornar-se cada vez menos correta. O modelo corre o risco de ser desfigurado ou até esquecido. São as reatualizações periódicas dos gestos divinos — numa palavra, as festas religiosas — que voltam a ensinar aos homens a sacralidade dos modelos. (…)

“Ora, a respeito do tempo sagrado pode se dizer que é sempre o mesmo, que é uma ‘sucessão de eternidades’ (Hubert e Mauss). Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, ‘saem’ de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem-se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que ‘não decorre’ – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável.

“O homem religioso sente necessidade de mergulhar por vezes nesse Tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a duração profana em que se desenrola toda a existência humana. É o eterno presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos. Para dar um só exemplo: é a hierogamia divina, que teve lugar in illo tempore, que tornou possível a união sexual humana. A união entre o deus e a deusa passa-se num instante atemporal, num eterno presente: as uniões sexuais entre os humanos – quando não rituais – desenrolam-se na duração, no tempo profano. O Tempo sagrado, mítico, funda igualmente o Tempo existencial, histórico, pois é o seu modelo exemplar. Em suma, graças aos seres divinos ou semidivinos é que tudo veio à existência. A ‘origem’ das realidades e da própria Vida é religiosa. (…)

“Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta-se a santidade da existência humana como criação divina. No resto do tempo, há sempre o risco de esquecer o que é fundamental: que a existência não é ‘dada’ por aquilo que os modernos chamam de ‘Natureza’, mas é uma criação dos Outros, os deuses ou os Seres semidivinos. Nas festas, ao contrário, reencontra-se a dimensão sagrada da existência, ao se aprender novamente como os deuses ou os Antepassados míticos criaram o homem e lhe ensinaram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos práticos.

“De certo ponto de vista, essa ‘saída’ periódica do Tempo histórico – e sobretudo as consequências que ela acarreta para a existência global do homem religioso  pode parecer uma recusa da história, portanto uma recusa da liberdade criadora. Trata-se, em suma, do eterno retorno in illo tempore, num passado que é ‘mítico’, que nada tem de histórico. Pode se concluir então que a eterna repetição dos gestos exemplares revelados pelos deuses ab origine opõe se a todo o progresso humano e paralisa toda a espontaneidade criadora. Certamente esta conclusão é, em parte, justificada. Em parte somente, porque o homem religioso, mesmo o mais ‘primitivo’, não rejeita, em princípio, o ‘ progresso’: aceita-o, mas confere-lhe uma origem e uma dimensão divinas. Tudo o que, na perspectiva moderna, nos parece ter marcado ‘progressos’ (seja qual for sua natureza: social, cultural, técnica etc.) em relação a uma situação anterior – tudo isto foi assumido pelas diversas sociedades primitivas, no decurso de sua longa história, como outras tantas novas revelações divinas.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 72 ss.

Templumtempus: a correspondência circular espaço-temporal

Tipi sagrada dos Arapaho, Wyoming (EUA)

Tipi sagrada dos Arapaho, Wyoming (EUA)

“(…) Em várias línguas das populações aborígines da América do Norte, o termo ‘Mundo’ (= Cosmos) é igualmente utilizado no sentido de ‘Ano’. Os yokut dizem ‘o mundo passou’, para exprimir que ‘um ano se passou’. Para os yuki, o ‘Ano’ é designado pelos vocábulos ‘Terra’ ou ‘Mundo’. Como os yokut, eles dizem ‘a terra passou’, no sentido de que se passou um ano. O vocabulário revela a correspondência religiosa entre o Mundo e o Tempo cósmico. O Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e se extingue no último dia do Ano, para renascer no dia do Ano Novo. (…) Esse renascimento é um nascimento, (…) o Cosmos renasce todos os anos porque, a cada Ano Novo, o Tempo começa ab initio.

“A correspondência cósmico-temporal é de natureza religiosa: o Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o ‘Ano’), pois tanto um como o outro são realidades sagradas, criações divinas. Entre certas populações norte americanas, essa correspondência cósmico-temporal é revelada pela própria estrutura dos edifícios sagrados. Visto que o Templo representa a imagem do Mundo, comporta igualmente um simbolismo temporal. É o que encontramos, por exemplo, entre os algonquinos e os sioux: sua cabana sagrada representa o Universo e simboliza também o ano. Porque o ano é concebido como um trajeto através das quatro direções cardeais, significadas pelas quatro janelas e pelas quatro portas da cabana sagrada. Os dacotas dizem: ‘O Ano é um círculo em volta do Mundo’, quer dizer, em volta da sua cabana sagrada, que é uma imago mundi. (…)

“[O filólogo alemão] Hermann Usener [(1834-1905) foi] o primeiro a explicar o parentesco  etimológico entre templumtempus, ao interpretar os dois termos pela noção de  interseção  (…). Investigações ulteriores afirmaram ainda mais esta descoberta:  ‘Templum exprime o espacial,  tempus o temporal. O conjunto  desses dois elementos constitui uma imagem circular espaço-temporal’.

“(…) Para o homem religioso das culturas arcaicas, o Mundo renova-se anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador. Este simbolismo está claramente indicado na estrutura arquitetônica dos santuários. Visto que o Templo é, ao mesmo tempo, o lugar santo por excelência e a imagem do Mundo, ele santifica o Cosmos como um todo e também a vida cósmica. Ora, a vida cósmica era imaginada sob a forma de uma trajetória circular e identificava-se com o Ano. O Ano era um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder ‘renascer’ sob a forma de um Ano Novo. A cada Ano Novo, um Tempo ‘ novo’, ‘puro’e ‘santo’ — porque ainda não usado — vinha à existência.

“Mas o Tempo renascia, recomeçava, porque, a cada Novo Ano, o Mundo era criado novamente. Verificamos (…) a importância do mito cosmogônico como modelo exemplar para toda espécie de criação e construção. Acrescentemos agora que a cosmogonia comporta igualmente a criação do Tempo. Mais ainda: assim como a cosmogonia é o arquétipo de toda ‘criação’, o Tempo cósmico que a cosmogonia faz brotar é o modelo exemplar de todos os outros tempos, quer dizer, dos Tempos específicos às diversas categorias de existentes. Expliquemo-nos: para o homem religioso das culturas arcaicas, toda criação, toda existência começa no Tempo: antes que uma coisa exista, seu tempo próprio não pode existir. Antes que o Cosmos viesse à existência, não havia tempo cósmico. Antes de uma determinada espécie vegetal ter sido criada, o tempo que a faz crescer agora, dar fruto e perecer, não existia. É por esta razão que toda criação é imaginada como tendo ocorrido no começo do Tempo, in principio. O Tempo brota com a primeira aparição de uma nova categoria de existentes. Eis por que o mito desempenha um papel tão importante: (…) é o mito que revela como uma realidade veio à existência.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 66 ss.

Duração profana e tempo sagrado

Essa iluminura do Livro de Horas da família Aussem, Colônia, Alemanha, início séc. XVI, reflete a crença medieval de que, no momento da consagração, o Cristo, sangrando, efetivamente se manifestava no altar - reforçada pelo fato de que ninguém de fato via o que se passava ali.  | Fonte

Essa iluminura do Livro de Horas da família Aussem, Colônia, Alemanha, início do séc. XVI, reflete a crença medieval de que, no momento da consagração, o Cristo, sangrando, efetivamente se manifestava no altar – reforçada pelo fato de que, devido à distância, ninguém chegava a ver o que se passava ali. | Fonte

“Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem contínuo. Há, por um lado, os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas); por outro lado, há o Tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode ‘passar’, sem perigo, da duração temporal ordinária para o Tempo sagrado.

“Surpreende-nos em primeiro lugar uma diferença essencial entre essas duas qualidades de Tempo: o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Toda festa religiosa, todo Tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, ‘nos primórdios’. Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal ‘ordinária’ e a reintegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por conseqüência, o Tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o Tempo sagrado não ‘flui’, que não constitui uma ‘duração’ irreversível. É um tempo ontológico por excelência, ‘parmenidiano’: mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota. A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado — aquele que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século: é o Tempo criado e santificado pelos deuses por ocasião de suas gesta, que são justamente reatualizadas pela festa. Em outras palavras, reencontra-se na festa a primeira aparição do Tempo sagrado, tal qual ela se efetuou ab origine, in illo tempore. Pois esse Tempo sagrado no qual se desenrola a festa não existia antes das gesta divinas comemoradas pela festa. Ao criarem as diferentes realidades que constituem hoje o Mundo, os Deuses fundaram igualmente o Tempo sagrado, visto que o Tempo contemporâneo de uma criação era necessariamente santificado pela presença e atividades divinas.

“O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não-religioso. O primeiro recusa se a viver unicamente no que, em termos modernos, chamamos de ‘presente histórico’; esforça-se por voltar a unir se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode ser equiparado à ‘Eternidade’. (…)

“Para o homem religioso, (…) a duração temporal profana pode ser ‘parada’ periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um Tempo sagrado, não-histórico (no sentido de que não pertence ao presente histórico). Tal como uma igreja constitui uma rotura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religioso que se realiza no seu interior marca uma rotura na duração temporal profana: já não é o Tempo histórico atual que é presente – o tempo que é vivido, por exemplo, nas ruas vizinhas –, mas o Tempo em que se desenrolou a existência histórica de Jesus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por sua paixão, por sua morte e ressurreição. É preciso, contudo, esclarecer que este exemplo não explicita toda a diferença existente entre o Tempo profano e o Tempo sagrado, pois, em relação às outras religiões, o cristianismo inovou a experiência e o conceito do Tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo. A liturgia cristã desenvolve se num tempo histórico santificado pela encarnação do Filho de Deus. O Tempo sagrado, periodicamente reatualizado nas religiões pré-cristãs (sobretudo nas religiões arcaicas), é um Tempo mítico, quer dizer, um Tempo primordial, não identificável no passado histórico, um Tempo original, no sentido de que brotou ‘de repente’, de que não foi precedido por um outro Tempo, pois nenhum Tempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito.

“É sobretudo essa concepção arcaica do Tempo mítico que nos interessa. (…)”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 63 ss.

A vida no limiar e no centro: o povo Haida

O povo Haida tradicionalmente vivia no litoral das atuais Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá. A leste ficava o continente norte-americano; a oeste, 11 mil quilômetros de oceano aberto. Eram, e são, uma cultura de fronteira — de uma zona no limiar entre terra e mar, entre o mundo dos animais e o dos deuses. Viviam em “um mundo mais antigo, em que os deuses são tão inumeráveis, numinosos, fatais e locais quanto as orcas, as pedras e as árvores”. (Robert Bringhurst, “A Story as Sharp as a Knife”, p. 18)

No idioma Haida clássico, eles se consideravam habitantes das Xhaaydla Gwaayaay — as “Ilhas na Fronteira entre os Mundos“. Ao mesmo tempo, porém, viviam — como toda cultura — no centro do mundo.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá, ambiente do povo Haida.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, costa oeste do Canadá, lar do povo Haida, no limiar entre mar e terra. | Clique para ampliar

A história do povo Haida remonta a milhares de anos antes da chegada dos europeus. Os Haida testemunharam mudanças profundas em sua terra e conseguiram sobreviver e prosperar graças aos recursos fornecidos pelo mar e pela floresta, tornando-se uma das civilizações culturalmente mais avançadas da América do Norte.

A cultura Haida teve a peculiaridade de combinar um estilo de vida baseado na caça e na coleta e o estabelecimento de cidades, em geral associada a uma cultura agrícola. Coletavam alimento duas vezes ao dia, na vazante; comiam frutas e outros vegetais colhidos nas florestas, e caçavam a grande variedade de animais da região.

“Mesmo sem agricultura, os Haida viviam como prósperos fazendeiros em cidades de porte considerável. Sua rica tradição artística e literatura oral tem suas raízes na presença constante do mar. Só raramente o maná cai dos céus — mas emerge todos os dias das ondas. Assim, o domínio divino primordial, na cosmologia Haida, não é celestial, é submarino.” (Idem, p. 65)

O ambiente em que os Haida viviam, morriam e contavam suas histórias era complexo. Haida Gwaii (como chamavam sua terra natal) era uma terra de água; água que bordejava suas aldeias praianas, que caía constantemente dos céus, e corria pelas florestas, nutrindo e dando vida a todas as suas criaturas, fossem estas humanas, animais ou míticas. A terra dos Haida é verde, densa e úmida, e seus mitos e arte refletem claramente a paisagem que habitavam.

As aldeias Haida situavam-se sobretudo nas praias, e é nesse espaço intermediário que a vida humana existia (assim como a cultura Haida como um todo existia na zona intermediária entre continente e oceano). As histórias começavam quando o Homem dava o pequeno passo necessário para transpor o limiar de um mundo para outro, que o levava do espaço intersticial do mundo humano para o mundo da floresta, do mar ou do céu, pertencente aos animais ou deuses. “Os seres humanos só se encontram em casa na xhaaydla, a fronteira ou região entremarés, na conjunção dos três. Bastavam algumas remadas ou um poucos passos para dentro do mato para deixar o mundo humano para trás” (idem, p. 155).

De todos os animais e seres espirituais do mundo dos Haida, nenhum era mais significativo para o senso de si desse povo que o Corvo — deus, trickster, criador do mundo, que convida os primeiros humanos a deixar seu esconderijo para desfrutar do novo mundo:

O grande dilúvio, que cobriu a Terra por tanto tempo, tinha por fim recuado e a areia de Haida Gwaii estava seca. O Corvo andava pela areia, de olhos e ouvidos atentos a qualquer visão ou som incomuns que quebrassem a monotonia. Um brilho branco chamou sua atenção e ali, bem aos seus pés, semienterrada na areia, estava uma concha gigante. Olhando mais de perto, ele notou que ela estava repleta de minúsculas criaturas, encolhidas de terror sob sua enorme sombra. Inclinou sua cabeçorra e, usando de toda a sua malandragem, tratou de alternadamente persuadi-los, seduzi-los e coagi-los a sair e brincar naquele mundo novinho em folha. Esses pequeninos eram os Haida originais, os primeiros seres humanos. (Bill Reid, “The Raven and the First Men”)

A sociedade Haida se dividia em duas partes, Águia e Corvo. A Águia representava a sociedade humana central, regular, o caminho da esquerda. Era ela que regia a coleta de alimentos, a transmissão dos julgamentos, os casamentos. O Corvo presidia o cambiante reino do mito, aquele passo que era preciso dar para deixar o mundo humano para trás e adentrar o domínio da arte e dos contos.

Sobre o Corvo, Claude Lévi-Strauss comenta:

O fato de os ameríndios porem um personagem tão insidioso, insolente, libidinoso, e, muitas vezes, grotesco, com um pendor para a escatologia, no ápice de seu panteão, talvez surpreenda alguns. Mas o pensamento indígena situa o Corvo no limiar entre duas eras (…). Já não se pode fazer qualquer coisa. O trickster descobre isso — muitas vezes ao custo da própria integridade. (…) O Corvo é ao mesmo tempo o maior rebelde e o legislador supremo. (Bringhurst e Reid, “The Raven Steals the Light”, do prefácio)

O trickster é capaz de cruzar fronteiras com grande facilidade, e o Corvo consegue navegar com facilidade o espaço liminar dos Haida, abrindo caminho para que os Haida façam o mesmo, como exige o contexto onde vivem. O Corvo “sabe como escapar por entre os poros, e como bloqueá-los; confunde as polaridades voltando sobre os próprios passos e invertendo seu próprio rumo; cobre seus rastros e torce seus significados; e é politrópico, mudando de pele ou de forma conforme cada situação exige.”(Lewis Hyde, “Trickster Makes this World”, p. 62)

Baseado em parte em Allison Steiger, aqui

Assumir a criação do (próprio) mundo

No Ketzelburg, castelo medieval erguido na segunda metade do séc. XII na Baviera e escavado entre 2004 e 2005, foi encontrado o esqueleto de um cão, segundo o hábito (já encontrado nos romanos) de enterrar, nas fundações dos edifícios, animais e objetos protetores a fim de afugentar os maus espíritos - aqui, o "cão fantasma" evitaria que o castelo fosse infestado por demônios. []

No Ketzelburg, castelo medieval erguido na segunda metade do séc. XII na Baviera e escavado entre 2004 e 2005, foi encontrado o esqueleto de um cão, segundo o hábito (já encontrado entre os romanos) de enterrar, nas fundações dos edifícios, animais e objetos protetores a fim de afugentar os maus espíritos; aqui, o “cão fantasma” evitaria que o castelo fosse infestado por demônios. A chave enterrada junto ao cão confirma sua função de guardião do limiar entre cosmos e caos. [Fonte]

“Instalar-se num território, construir uma morada pede (…) uma decisão vital, tanto para a comunidade como para o indivíduo. Trata-se de assumir a criação do ‘mundo’ que se escolheu habitar. É preciso, pois, imitar a obra dos deuses, a cosmogonia. Mas isso nem sempre é fácil de fazer, pois existem também cosmogonias trágicas, sangrentas: como imitador dos gestos divinos, o homem deve reiterá-las. Se os deuses tiveram de espancar e esquartejar um Monstro marinho ou um Ser primordial para poderem criar a partir dele o mundo, o homem, por sua vez, deve imitar essa ação quando constrói seu mundo próprio, a cidade ou a casa. Daí a necessidade de sacrifícios sangrentos ou simbólicos por ocasião das construções, as inúmeras formas de Bauopfer [v. abaixo] (…).

“Seja qual for a estrutura de uma sociedade tradicional – seja uma sociedade de caçadores, pastores, agricultores, ou uma sociedade que já se encontre no estágio da civilização urbana –,a habitação é sempre santificada, pois constitui uma imago mundi, e o mundo é uma criação divina. Mas existem várias maneiras de equiparar a morada ao Cosmos, justamente porque existem vários tipos de cosmogonia. (…) basta-nos distinguir dois meios de transformar ritualmente a morada (tanto o território como a casa) em Cosmos, quer dizer, de lhe conferir o valor de imago mundi: (a) assimilando-a ao Cosmos pela projeção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, quando se trate de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis mundi, quando se trate da habitação familiar; (b) repetindo, mediante um ritual de construção, o ato exemplar dos deuses, graças ao qual o Mundo tomou nascimento do corpo de um Dragão marinho ou de um Gigante primordial. (…)

“Com efeito, a morada das populações primitivas árticas, norte-americanas e norte asiáticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis mundi, quer dizer, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo, que, como vimos, ligam a Terra ao Céu. Em outras palavras, na própria estrutura da habitação revela-se o simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e designados por este nome. Esse poste central tem um papel ritual importante: é na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do Ser supremo celestial. O mesmo simbolismo conservou-se entre os pastores criadores de gado da Ásia central, mas, como a habitação de teto cônico com pilar central foi substituída aqui pela iurta, a função mítico-ritual do pilar é atribuída à abertura superior de evacuação da fumaça. Tal como o poste (= Axis mundi), a árvore desprovida de ramos cujo cimo sai pela abertura superior da iurta (e que simboliza a Árvore cósmica) é concebida como uma escada que conduz ao Céu: os xamãs trepam por ela na sua viagem celeste. E é pela abertura superior que saem os xamãs. Encontra-se ainda o Pilar sagrado, erguido no meio da habitação, na África, entre os povos hamitas e hamitoides. Concluindo, toda morada situa-se perto do Axis mundi, pois o homem religioso só pode viver implantado na realidade absoluta.

“Uma concepção similar encontra-se também numa cultura altamente evoluída como a da Índia, mas neste caso apresenta se igualmente a outra maneira de equiparar a casa ao Cosmos, acerca da qual já dissemos algumas palavras.

“Com efeito, antes de os pedreiros colocarem a primeira pedra, o astrólogo indica-lhes o ponto dos alicerces que se situa acima da Serpente que sustenta o mundo. Um mestre de obras talha uma estaca e a enterra no solo, exatamente no ponto designado, a fim de fixar bem a cabeça da serpente. Uma pedra de base é colocada em seguida por cima da estaca. A pedra angular encontra-se assim exatamente no ‘Centro do Mundo’. Mas, por outro lado, o ato de fundação repete o ato cosmogônico: enterrar a estaca na cabeça da serpente e ‘fixá- la’ é incitar o gesto primordial de Soma ou de Indra, quando este último, conforme diz o Rig Veda, ‘feriu a serpente no seu antro’ (IV, 17, 9) e ‘cortou-lhe a cabeça’ com seus raios (1, 52, 10). Como já dissemos, a Serpente simboliza o Caos, o amorfo, o não-manifestado. Decapitá-la equivale a um ato de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal. Lembremo- nos de que foi do corpo de um monstro marinho primordial, Tiamat, que o deus Marduk deu forma ao Universo. Essa vitória era simbolicamente reiterada todos os anos, visto que todos os anos se renovava o Cosmos. Mas o ato exemplar da vitória divina era igualmente repetido por ocasião de qualquer construção; pois toda nova construção reproduzia a Criação do Mundo.

“(…) Com efeito, a partir de um determinado tipo de cultura, o mito cosmogônico explica a Criação pela morte de um Gigante (…): seus órgãos dão nascimento às diferentes regiões cósmicas. Segundo outros grupos de mitos, não é somente o Cosmos que nasce na seqüência da imolação de um Ser primordial e da sua própria substância, mas também as plantas alimentares, as raças humanas ou as diferentes classes sociais. É desse tipo de mitos cosmogônicos que dependem os Bauopfer. Sabe se que, para durar, uma ‘construção’ (casa, templo, obra técnica etc.) deve ser animada, quer dizer, receber uma vida e uma alma. O ‘traslado ‘da alma só é possível mediante um sacrifício sangrento. A história das religiões, a etnologia, o folclore apresentam inúmeras formas de Bauopfer, isto é, sacrifícios sangrentos ou simbólicos em proveito de uma construção. (…).

“Tal como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmológicos. É por essa razão que se instalar em qualquer parte, construir uma aldeia ou simplesmente uma casa representa uma decisão grave, pois isso compromete a própria existência do homem: trata-se, em suma, de criar seu próprio ‘mundo’ e assumir a responsabilidade de mantê-lo e renová-lo . (…) Toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova vida. E todo começo repete o começo primordial, quando o Universo viu pela primeira vez a luz do dia. (…)

“Dado que a morada constitui uma imago mundi, ela se situa simbolicamente no ‘Centro do Mundo’. A multiplicidade, até mesmo a infinidade dos Centros do Mundo não traz quaisquer dificuldades para o pensamento religioso. Porque não se trata do espaço geométrico, mas de um espaço existencial e sagrado, que apresenta uma estrutura totalmente diferente e que é suscetível de uma infinidade de roturas e, portanto, de comunicações com o transcendente. Vimos o significado cosmológico e o papel ritual da abertura superior nas diferentes formas de habitação. Em outras culturas, esses significados cosmológicos e funções rituais são atribuídos à chaminé (= orifício da fumaça) (…). Lembremos que os santuários mais antigos eram a céu aberto ou apresentavam uma abertura no teto: era o ‘olho da cúpula’, simbolizando a rotura dos níveis, a comunicação com o transcendente.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 49 ss.

“Nosso mundo” está sempre no Centro

O Oráculo de Delfos era reverenciado no mundo grego como o omphalos, o centro do mundo.

O Oráculo de Delfos era reverenciado no mundo grego como o omphalos, o umbigo (centro) do mundo.

“Um Universo origina-se a partir do seu Centro, estende-se a partir de um ponto central que é como o seu ‘umbigo’. É assim que, segundo o Rig Veda (X, 149), nasce e se desenvolve o Universo: a partir de um núcleo, de um ponto central. A tradição judaica é ainda mais explícita: ‘O Santíssimo criou o mundo como um embrião. Tal como o embrião cresce a partir do umbigo, do mesmo modo Deus começou a criar o mundo pelo umbigo e a partir daí difundiu se em todas as direções’. E visto que o ‘umbigo da Terra’, o Centro do Mundo é a Terra Santa, Yoma afirma: ‘O mundo foi criado a começar por Sion’. Rabbi bin Gorion disse do rochedo de Jerusalém que ‘ele se chama a Pedra angular da Terra, quer dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir dali que toda a Terra se desenvolveu’. Por outro lado, uma vez que a criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí resulta que o primeiro homem foi fabricado no ‘umbigo da Terra’ (tradição mesopotâmica), no Centro do Mundo (tradição iraniana), no Paraíso situado no ‘umbigo da Terra’ ou em Jerusalém (tradições judaico-cristãs). E nem podia ser de outra forma, aliás, pois o Centro é justamente o lugar onde se efetua uma rotura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real por excelência. Uma criação implica superabundância de realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção do sagrado no mundo.

“Segue se daí que toda construção ou fabricação tem como modelo exemplar a cosmogonia. A Criação do Mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano, seja qual for seu plano de referência. Já vimos que a instalação num território reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o valor cosmogônico do Centro, compreendemos melhor por que todo estabelecimento humano repete a Criação do Mundo a partir de um ponto central (o ‘umbigo’). Da mesma forma que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali, tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a construção de uma nova aldeia, procura-se um cruzamento natural, onde se cortam perpendicularmente dois caminhos. O quadrado construído a começar de um ponto central é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro setores – que implica aliás uma partilha similar da comunidade – corresponde à divisão do Universo em quatro horizontes. No meio da aldeia deixa se muitas vezes um espaço vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telhado representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se, na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado por certos animais (serpente, crocodilo etc.) ou pelos ideogramas das trevash.

“O simbolismo cósmico da aldeia é retomado na estrutura do santuário ou da casa cultual. Em Waropen, na Nova Guiné, a ‘casa dos homens’ encontra-se no meio da aldeia: o telhado representa a abóbada celeste, as quatro paredes correspondem às quatro direções do espaço. Em Ceram, a pedra sagrada da aldeia simboliza o Céu, e as quatro colunas de pedra que a sustentam encarnam os quatro pilares que sustentam o Céu. Encontram-se concepções análogas entre as tribos algonquinas e sioux. A cabana sagrada, onde se realizam as iniciações, representa o Universo. O teto da cabana simboliza a cúpula celeste, o soalho representa a Terra, as quatro paredes as quatro direções do espaço cósmico. A construção ritual do espaço é sublinhada por um triplo simbolismo: as quatro portas, as quatro janelas e as quatro cores significam os quatr o pontos cardeais. A construção da cabana sagrada repete assim a cosmogonia, pois esta casinha representa o Mundo.

“Não é surpreendente encontrar uma concepção similar na Itália antiga e entre os antigos germanos. Trata – se, em suma, de uma idéia arcaica e muito difundida: a partir de um Centro projetam-se os quatro horizontes nas quatro direções cardeais. O mundus romano era uma fossa circular, dividida em quatro; era ao mesmo tempo a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Sugeriu se com razão que a Roma quadrata deve ser entendida não como tendo a forma de um quadrado, mas como sendo dividida em quatro. O mundus era evidentemente equiparado ao omphalos, ao umbigo da Terra: a Cidade (Urbs) situava-se no meio do orbis terrarum. Demonstra-se, assim, que idéias similares explicam a estrutura das aldeias e das cidades germânicas. Em contextos culturais extremamente variados, reencontramos sempre o mesmo esquema cosmológico e a mesma encenação ritual: a instalação num território equivale à fundação de um mundo.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 32 ss., 44 ss.

No Centro, a Imago Mundi

"(...) o pátio figurava o Mar (quer dizer, as regiões inferiores), o santuário representava a Terra, e o Santo dos Santos, o Céu (...). A Palestina, Jerusalém e o Templo de Jerusalém representam cada um e ao mesmo tempo a imagem do Universo e o Centro do Mundo."

“(…) o pátio figurava o Mar (quer dizer, as regiões inferiores), o santuário representava a Terra, e o Santo dos Santos, o Céu (…). A Palestina, Jerusalém e o Templo de Jerusalém representam cada um e ao mesmo tempo a imagem do Universo e o Centro do Mundo.” (Planta do templo: Isaac Newton. Clique na imagem para ampliar.)

“Um grande número de mitos, ritos e crenças diversas deriva [do] ‘sistema do Mundo’ tradicional. (…) Comecemos por um exemplo que tem o mérito de nos revelar, de imediato, a coerência e a complexidade de um tal simbolismo: a Montanha Cósmica. Acabamos de ver que a montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera -se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam nos dessas montanhas – míticas ou reais – situadas n o Centro do Mundo: é o caso do Meru, na Índia , de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “ Monte dos Países”, na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava aliás “ Umbigo da Terra”. Visto que a montanha sagrada é um axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo; daí resulta, pois, que o território que a cerca, e que constitui o ‘nosso mundo’, é considerado como a região mais alta. (…)

“O mesmo simbolismo do Centro explica outras séries de imagens cosmológicas e crenças religiosas, entre as quais vamos reter as mais importantes: (a) as cidades santas e os santuários estão no Centro do Mundo; (b) os templos são réplicas da Montanha cósmica e, consequentemente, constituem a ‘ligação’ por excelência entre a Terra e o Céu; (c) os alicerces dos templos mergulham profundamente nas regiões inferiores. (…)

“De tudo o que acabamos de dizer resulta que o ‘verdadeiro mundo’ se encontra sempre no ‘meio’, no ‘Centro’, pois é aí que há rotura de nível, comunicação entre as três zonas cósmicas. Trata-se sempre de um Cosmos perfeito, seja qual for sua extensão. Toda uma região (por exemplo, a Palestina), uma cidade (Jerusalém), um santuário (o templo de Jerusalém) representam indiferentemente uma imago mundi. Flávio Josefo escreveu, a propósito do simbolismo do templo, que o pátio figurava o Mar (quer dizer, as regiões inferiores), o santuário representava a Terra, e o Santo dos Santos, o Céu (Ant. Jud., III, VII, 7). Verifica-se pois que a imago mundi, assim como o ‘Centro’, se repete no interior do mundo habitado. A Palestina, Jerusalém e o Templo de Jerusalém representam cada um e ao mesmo tempo a imagem do Universo e o Centro do Mundo. Essa multiplicidade de ‘Centros’ e essa reiteração da imagem do mundo a escalas cada vez mais modestas constituem uma das notas específicas das sociedades tradicionais.

“Parece-nos que se impõe uma conclusão: o homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo. Sabia que seu país se encontrava efetivamente no meio da Terra; sabia também que sua cidade constituía o umbigo do Universo e, sobretudo, que o Templo ou o Palácio eram verdadeiros Centros do Mundo; mas queria também que sua própria casa se situasse no Centro e que ela fosse uma imago mundi. E, como vamos ver, acreditava se que as habitações situavam-se de fato no Centro do Mundo e reproduziam, em escala microcósmica, o Universo. Em outras palavras, o homem das sociedades tradicionais só podia viver num espaço ‘aberto’ para o alto, onde a rotura de nível estava simbolicamente assegurada e a comunicação com o outro mundo, o mundo transcendental, era ritualmente possível. O santuário — o ‘Centro’ por excelência — estava ali, perto dele, na sua cidade, e a comunicação com o mundo dos deuses era- lhe afiançada pela simples entrada no templo. Mas o homo religiosus sentia a necessidade de viver sempre no Centro — tal como os achilpa, que (…) traziam sempre consigo o poste sagrado, o Axis mundi, a fim de não se afastarem do Centro e permanecerem em comunicação com o mundo supra-terrestre . Numa palavra, sejam quais forem as dimensões do espaço que lhe é familiar e no qual ele se sente situado — seu país, sua cidade, sua aldeia, sua casa —, o homem religioso experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Cosmos.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 38 ss.

Axis mundi, o eixo cósmico

O poste sagrado dos achilpa [kauwa auwa], feito do tronco de um eucalipto (à direita),  ‘sustenta’ o mundo deles e assegura a comunicação com o Céu.

“O poste sagrado dos achilpa [kauwa auwa] ‘sustenta’ o mundo deles e assegura a comunicação com o Céu.”

“Segundo as tradições dos achilpa [nômades australianos cuja economia se encontra ainda no estágio da colheita e da caça miúda], uma tribo Arunta, o Ser divino Numbakula ‘cosmizou’, nos tempos míticos, o futuro território da tribo, criou seu Antepassado e fundou suas instituições. Do tronco de um eucalipto, Numbakula moldou o poste sagrado (kauwa auwa) e, depois de o ter ungido com sangue, trepou por ele e desapareceu no Céu. Esse poste representa um eixo cósmico, pois foi à volta dele que o território se tornou habitável, transformou se num ‘mundo’. Daí a importância do papel ritual do poste sagrado: durante suas peregrinações, os achilpa transportam-no sempre consigo e escolhem a direção que devem seguir conforme a inclinação do poste. Isto permite que os achilpa, embora se desloquem continuamente, estejam sempre no ‘seu mundo’ e, ao mesmo tempo, em comunicação com o Céu, onde Numbakula desapareceu. Se o poste se quebra, é a catástrofe; é de certa maneira o ‘fim do Mundo’, a regressão ao Caos. Contam Spencer e Gillen que, tendo se quebrado uma vez o poste sagrado, toda a tribo foi tomada de angústia; seus membros vaguearam durante algum tempo e finalmente sentaram-se no chão e deixaram-se morrer.

“Esse exemplo ilustra admiravelmente, e a um só tempo, a função cosmológica do poste ritual e seu papel soteriológico: de um lado, o kauwa auwa reproduz o poste utilizado por Numbakula para cosmizar o mundo; de outro, é graças ao poste que os achilpa acreditam poder comunicar-se com o domínio celeste. Ora, a existência humana só é possível graças a essa comunicação permanente com o Céu. O ‘mundo’ dos achilpa só se torna realmente o mundo deles na medida em que reproduz o Cosmos organizado e santificado por Numbakula. Não se pode viver sem uma ‘abertura’ para o transcendente; em outras palavras, não se pode viver no ‘Caos’. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível — e os achilpa deixam-se morrer. (…)

“Instalar-se num território equivale, em última instância, a consagrá-lo: quando a instalação já não é provisória, como nos nômades, mas permanente, como é o caso dos sedentários, implica uma decisão vital que compromete a existência de toda a comunidade. ‘Situar-se’ num lugar, organizá-lo, habitá-lo — são ações que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao ‘criá-lo’. Ora, esse ‘Universo’ é sempre a réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos deuses: participa, portanto, da santidade da obra dos deuses.

“O poste sagrado dos achilpa ‘sustenta’ o mundo deles e assegura a comunicação com o Céu. Temos aqui o protótipo de uma imagem cosmológica que teve uma grande difusão: a dos pilares cósmicos que sustentam o Céu e ao mesmo tempo abrem a via para o mundo dos deuses.”

 * * *

“A imagem visível desse pilar cósmico [axis mundi] é, no Céu, a Via Láctea.”

“Os kwakiutl acreditam que um poste de cobre atravessa os três níveis cósmicos (o mundo de baixo, a Terra, o Céu): no ponto onde o poste entra no Céu encontra-se a ‘Porta do Mundo do alto’. A imagem visível desse pilar cósmico é, no Céu, a Via Láctea. Mas essa obra dos deuses que é o Universo é retomada e imitada pelos homens à escala deles. O Axis mundi que se vê no Céu, sob a forma da Via Láctea, tornou-se presente na casa cultual sob a forma de um poste sagrado. É um tronco de cedro de dez a doze metros de comprimento, do qual mais da metade sai pelo telhado da casa cultual. Esse pilar desempenha um papel capital nas cerimônias: é ele que confere uma estrutura cósmica à casa. Nas canções rituais, a casa é chamada de ‘nosso mundo’, e os candidatos à iniciação, que habitam nela, proclamam: ‘Estou no Centro do Mundo… Estou perto do pilar do mundo’ etc. — a mesma assimilação do pilar cósmico ao poste sagrado, e da casa cultual ao Universo, entre os Nad’a de Flores. O poste de sacrifício chama se ‘Poste do Céu’, e acredita se que o Céu seja sustentado por ele.

“O grito do neófito kwakiutl: ‘Estou no Centro do Mundo!’, revela-nos, de imediato, uma das mais profundas significações do espaço sagrado. Lá onde, por meio de uma hierofania, se efetuou a rotura dos níveis, operou se ao mesmo tempo uma ‘abertura’ em cima (o mundo divino) ou embaixo (as regiões inferiores, o mundo dos mortos). Os três níveis cósmicos — Terra, Céu, regiões inferiores — tornaram-se comunicantes. Como acabamos de ver, a comunicação às vezes é expressa por meio da imagem de uma coluna universal, Axis mundi, que liga e sustenta o Céu e a Terra, e cuja base se encontra cravada no mundo de baixo (que se chama ‘Infernos’). Essa coluna cósmica só pode situar-se no próprio centro do Universo, pois a totalidade do mundo habitável espalha-se à volta dela. Temos, pois, de considerar uma sequência de concepções religiosas e imagens cosmológicas que são solidárias e se articulam num ‘sistema’, ao qual se pode chamar de ‘sistema do Mundo’ das sociedades tradicionais: (a) um lugar sagrado constitui uma rotura na homogeneidade do espaço; (b) essa rotura é simbolizada por uma ‘abertura’, pela qual se tornou possível a passagem de uma região cósmica a outra (do Céu à Terra e vice-versa; da Terra para o mundo inferior); (c) à comunicação com o Céu é expressa indiferentemente por certo número de imagens referentes todas elas ao Axis mundi: pilar (cf. a universalis columna), escada (cf. a escada de Jacó), montanha, árvore, cipós etc.; (d) em torno desse eixo cósmico estende-se o ‘Mundo’ (‘nosso mundo’) — logo, o eixo encontra-se ‘ao meio’, no ‘umbigo da Terra’, é o Centro do Mundo.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 35-36.
Baldwin Spencer e F. J. Gillen, The Arunta: A Study of a Stone Age People (1927). Aqui.