Se, nas sociedades tradicionais, a fixidez das formas hieráticas e a repetição das gestas levadas a cabo nos primórdios “são a consequência lógica de uma teologia que considerava a ordem cósmica uma obra essencialmente divina, e via em toda mudança o risco de uma regressão ao caos e, por conseguinte, o triunfo das forças demoníacas” [1, p. 93], no Egito essa lógica “conservadora” foi levada ao paroxismo — e a regularidade das cheias do Nilo e a fartura por elas proporcionada certamente contribuíram para reforçar o senso de harmonia e estabilidade da cultura egípcia. Assim, o que os egiptólogos denominam de “imobilismo” traduz o empenho dos egípcios em manter intacta a Criação inicial, perfeita sob todos os aspectos — cosmológico, religioso, social e ético.
Esse tempo das origens, intitulado pelos egípcios de Tep zepi, a “Primeira Vez”, estendeu-se do aparecimento do deus criador sobre as águas primordiais à entronização de Hórus; “tudo aquilo que existe, desde fenômenos naturais até realidades religiosas e culturais (plantas dos templos, calendário, escrita, rituais, insígnias reais etc.) deve sua validade e justificativa ao fato de ter sido criado no decorrer da época inicial” [ibidem]. A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.
Ora, a “Primeira Vez” (e a ordem nela, e por meio dela, instaurada) caracterizou-se pela perfeição absoluta, “antes que a raiva, ou o barulho, a luta ou a desordem fizessem seu aparecimento” [apud 1, p. 93], quando não havia morte nem doença — e foi a partir da intervenção do mal que surgiu a desordem, pondo fim à idade de ouro. Assim, “é justamente essa periodicidade dos ritmos cósmicos que constitui a perfeição instituída nos tempos da ‘Primeira Vez’. A desordem implica uma mudança inútil e, por conseguinte, nociva no ciclo exemplar das mudanças perfeitamente ordenadas” [1, p. 97]. E, por constituir a soma dos modelos a serem imitados, cabia aos homens reatualizar continuamente, por meio dos ritos, esse tempo forte das origens, renovando assim a ma’at (personificada pela deusa Maat) — termo que se traduz por “justiça”, “verdade”, “ordem”, “honestidade”, mas cujo significado geral é “a boa ordem” e, por conseguinte, “o direito”, “a justiça” —, a ordem cósmica fundamental que emergiu no momento da Criação original e refletia, portanto, a perfeição da idade de ouro. “Assim, segundo um dos primeiros textos religiosos, o Criador surgiu o monte de terra primordial somente ‘depois que ele havia substituído o Caos por ma’at.’ O faraó era responsável pela administração da ma’at de acordo com seu divino julgamento; segundo aquele mesmo texto: ‘O Céu [Nut] está satisfeito e a Terra [Geb] se alegra quando sabem que o rei Pepi II substituiu a desordem por ma’at’” [2, p. 71]. Desse modo, se faltava à religião egípcia um livro sagrado ou um conjunto de mandamentos, ela por outro lado dispunha da ma’at como princípio unificador.
De fato, se a ordem social representava um aspecto da ordem cósmica, entende-se que, ao lado da fundação do Mundo a partir do caos primordial, o outro momento decisivo da prodigiosa “Primeira Vez” tivesse sido justamente o advento do faraó. Com efeito, a fundação do Estado unificado equivaleu a uma cosmogonia; o faraó, como deus encarnado, “instaurou um mundo novo, uma civilização infinitamente mais complexa e superior à das aldeias neolíticas. O essencial era assegurar a permanência dessa obra efetuada de acordo com um modelo divino; em outras palavras, evitar as crises suscetíveis de abalar os alicerces do novo mundo. A divindade do faraó constituía a melhor garantia disso. Como o faraó era imortal, sua morte significava somente sua transladação ao Céu. Estava assegurada a continuidade de um deus encarnado para outro deus encarnado e, consequentemente, a continuidade da ordem cósmica e social” [1, p. 93].
Para os egípcios, pois, o Criador foi o primeiro rei — e assim, no Livro dos Mortos, o deus proclama: “Eu sou Atum, quando estava sozinho em Nun [o oceano primordial]. Eu sou Rá na sua primeira manifestação, quando ele começou a governar a sua Criação” [apud 1, p. 97, grifo nosso] — e transmitiu essa prerrogativa a seu filho e sucessor, o primeiro faraó, consagrando a realeza como instituição divina. Conforme vimos no exemplo acima, os gestos do faraó são descritos nos mesmos termos com que se apresentam os gestos de Rá ou certas epifanias solares. Assim, “a criação de Rá é resumida às vezes com palavras precisas: ‘Ele colocou ordem [ma’at] no lugar do caos’. E é nos mesmos termos que se fala de Tutancâmon quando ele restaurou a ordem (…): ‘Ele pôs a ma’at no lugar da mentira (da desordem)’. Da mesma forma, o verbo khay, ‘brilhar’, é empregado indiferentemente para descrever a emergência do Sol no instante da Criação ou em cada aurora, e o aparecimento do faraó na cerimônia da coroação, nas festividades, ou no conselho privado”. [1, p. 97].
“Por constituir o próprio fundamento do cosmo e da vida, a ma’at pode ser conhecida pelos indivíduos isoladamente. Em textos de origens e épocas diferentes, encontram-se declarações como as seguintes: ‘Incita teu coração a conhecer a ma’at!’; ‘Faço com que conheças a coisa da ma’at no teu coração; oxalá possas fazer o que é correto para ti!’; ou: ‘Eu era um homem que amava a ma’at e odiava o pecado, pois sabia que [o pecado] é como que uma abominação a Deus. Com efeito, é Deus que concede o conhecimento necessário. Um príncipe é designado como ‘alguém que conhece a verdade [ma’at] e que é instruído por Deus’. O autor de uma oração a Rá exclama: ‘Oxalá possas introduzir a ma’at no meu coração!’.” [Ibidem]
Com o passar dos séculos, difundiu-se na cultura egípcia a crença de que, diante da deusa Maat, de nada valeriam as riquezas, nem a posição social do falecido; apenas seus atos seriam levados em conta. Com efeito, a existência humana veio a ser compreendida pelos egípcios como um mero segmento de uma jornada eterna presidida e orquestrada por forças sobrenaturais que assumiam a forma das muitas divindades do panteão egípcio. A vida terrena do indivíduo não seria, porém, um mero prólogo de algo maior, mas parte da viagem como um todo. O conceito egípcio de vida após a morte era de um espelhamento da vida na terra (especificamente, a vida no Egito), e quem quisesse desfrutar o resto de sua jornada eterna teria de viver bem esta vida.
Tal crença de que a sorte dos mortos dependia de sua conduta moral enquanto vivos foi uma elaboração original do espírito religioso egípcio. Mil anos mais tarde, essa idéia não fora ainda adotada por nenhum outro povo conhecido. Na Mesopotâmia, por exemplo, ou entre os hebreus, bons e maus enfrentavam, no além, as mesmas vicissitudes, indiscriminadamente. A mitologia egípcia, assim, vai girar em torno do reinado de Rá sobre a terra, de um lado, e dos embates entre os deuses Osíris, Ísis e Hórus e o destruidor Set, in illo tempore; e de seu reflexo no trajeto diário de Rá pela abóbada celeste e em sua jornada noturna através de sua contraparte no Mundo Inferior, o Duat. A temática religiosa central será, para o egípcio, o conflito entre os paladinos da ma’at e as forças da desordem; a importância do faraó para a manutenção da ma’at e a contínua morte e regeneração dos deuses como modelo para a regeneração também da vida humana.
[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.
[2] Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. Pp. 55-86.