O milagre inesquecível da “Primeira Vez”: a instauração da ma’at e o “imobilismo” egípcio

"A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo."

“A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.” | Via

Se, nas sociedades tradicionais, a fixidez das formas hieráticas e a repetição das gestas levadas a cabo nos primórdios “são a consequência lógica de uma teologia que considerava a ordem cósmica uma obra essencialmente divina, e via em toda mudança o risco de uma regressão ao caos e, por conseguinte, o triunfo das forças demoníacas” [1, p. 93], no Egito essa lógica “conservadora” foi levada ao paroxismo — e a regularidade das cheias do Nilo e a fartura por elas proporcionada certamente contribuíram para reforçar o senso de harmonia e estabilidade da cultura egípcia. Assim, o que os egiptólogos denominam de “imobilismo” traduz o empenho dos egípcios em manter intacta a Criação inicial, perfeita sob todos os aspectos — cosmológico, religioso, social e ético.

Esse tempo das origens, intitulado pelos egípcios de Tep zepi, a “Primeira Vez”, estendeu-se do aparecimento do deus criador sobre as águas primordiais à entronização de Hórus; “tudo aquilo que existe, desde fenômenos naturais até realidades religiosas e culturais (plantas dos templos, calendário, escrita, rituais, insígnias reais etc.) deve sua validade e justificativa ao fato de ter sido criado no decorrer da época inicial” [ibidem]. A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.

Ora, a “Primeira Vez” (e a ordem nela, e por meio dela, instaurada) caracterizou-se pela perfeição absoluta, “antes que a raiva, ou o barulho, a luta ou a desordem fizessem seu aparecimento” [apud 1, p. 93], quando não havia morte nem doença — e foi a partir da intervenção do mal que surgiu a desordem, pondo fim à idade de ouro. Assim, “é justamente essa periodicidade dos ritmos cósmicos que constitui a perfeição instituída nos tempos da ‘Primeira Vez’. A desordem implica uma mudança inútil e, por conseguinte, nociva no ciclo exemplar das mudanças perfeitamente ordenadas” [1, p. 97]. E, por constituir a soma dos modelos a serem imitados, cabia aos homens reatualizar continuamente, por meio dos ritos, esse tempo forte das origens, renovando assim a ma’at (personificada pela deusa Maat) — termo que se traduz por “justiça”, “verdade”, “ordem”, “honestidade”, mas cujo significado geral é “a boa ordem” e, por conseguinte, “o direito”, “a justiça” —, a ordem cósmica fundamental que emergiu no momento da Criação original e refletia, portanto, a perfeição da idade de ouro. “Assim, segundo um dos primeiros textos religiosos, o Criador surgiu o monte de terra primordial somente ‘depois que ele havia substituído o Caos por ma’at.’ O faraó era responsável pela administração da ma’at de acordo com seu divino julgamento; segundo aquele mesmo texto: ‘O Céu [Nut] está satisfeito e a Terra [Geb] se alegra quando sabem que o rei Pepi II substituiu a desordem por ma’at’” [2, p. 71]. Desse modo, se faltava à religião egípcia um livro sagrado ou um conjunto de mandamentos, ela por outro lado dispunha da ma’at como princípio unificador.

De fato, se a ordem social representava um aspecto da ordem cósmica, entende-se que, ao lado da fundação do Mundo a partir do caos primordial, o outro momento decisivo da prodigiosa “Primeira Vez” tivesse sido justamente o advento do faraó. Com efeito, a fundação do Estado unificado equivaleu a uma cosmogonia; o faraó, como deus encarnado, “instaurou um mundo novo, uma civilização infinitamente mais complexa e superior à das aldeias neolíticas. O essencial era assegurar a permanência dessa obra efetuada de acordo com um modelo divino; em outras palavras, evitar as crises suscetíveis de abalar os alicerces do novo mundo. A divindade do faraó constituía a melhor garantia disso. Como o faraó era imortal, sua morte significava somente sua transladação ao Céu. Estava assegurada a continuidade de um deus encarnado para outro deus encarnado e, consequentemente, a continuidade da ordem cósmica e social” [1, p. 93].

Para os egípcios, pois, o Criador foi o primeiro rei — e assim, no Livro dos Mortos, o deus proclama: “Eu sou Atum, quando estava sozinho em Nun [o oceano primordial]. Eu sou Rá na sua primeira manifestação, quando ele começou a governar a sua Criação” [apud 1, p. 97, grifo nosso] — e transmitiu essa prerrogativa a seu filho e sucessor, o primeiro faraó, consagrando a realeza como instituição divina. Conforme vimos no exemplo acima, os gestos do faraó são descritos nos mesmos termos com que se apresentam os gestos de Rá ou certas epifanias solares. Assim, “a criação de Rá é resumida às vezes com palavras precisas: ‘Ele colocou ordem [ma’at] no lugar do caos’. E é nos mesmos termos que se fala de Tutancâmon quando ele restaurou a ordem (…): ‘Ele pôs a ma’at no lugar da mentira (da desordem)’. Da mesma forma, o verbo khay, ‘brilhar’, é empregado indiferentemente para descrever a emergência do Sol no instante da Criação ou em cada aurora, e o aparecimento do faraó na cerimônia da coroação, nas festividades, ou no conselho privado”. [1, p. 97].

“Por constituir o próprio fundamento do cosmo e da vida, a ma’at pode ser conhecida pelos indivíduos isoladamente. Em textos de origens e épocas diferentes, encontram-se declarações como as seguintes: ‘Incita teu coração a conhecer a ma’at!’; ‘Faço com que conheças a coisa da ma’at no teu coração; oxalá possas fazer o que é correto para ti!’; ou: ‘Eu era um homem que amava a ma’at e odiava o pecado, pois sabia que [o pecado] é como que uma abominação a Deus. Com efeito, é Deus que concede o conhecimento necessário. Um príncipe é designado como ‘alguém que conhece a verdade [ma’at] e que é instruído por Deus’. O autor de uma oração a Rá exclama: ‘Oxalá possas introduzir a ma’at no meu coração!’.” [Ibidem]

Com o passar dos séculos, difundiu-se na cultura egípcia a crença de que, diante da deusa Maat, de nada valeriam as riquezas, nem a posição social do falecido; apenas seus atos seriam levados em conta. Com efeito, a existência humana veio a ser compreendida pelos egípcios como um mero segmento de uma jornada eterna presidida e orquestrada por forças sobrenaturais que assumiam a forma das muitas divindades do panteão egípcio. A vida terrena do indivíduo não seria, porém, um mero prólogo de algo maior, mas parte da viagem como um todo. O conceito egípcio de vida após a morte era de um espelhamento da vida na terra (especificamente, a vida no Egito), e quem quisesse desfrutar o resto de sua jornada eterna teria de viver bem esta vida.

Tal crença de que a sorte dos mortos dependia de sua conduta moral enquanto vivos foi uma elaboração original do espírito religioso egípcio. Mil anos mais tarde, essa idéia não fora ainda adotada por nenhum outro povo conhecido. Na Mesopotâmia, por exemplo, ou entre os hebreus, bons e maus enfrentavam, no além, as mesmas vicissitudes, indiscriminadamente. A mitologia egípcia, assim, vai girar em torno do reinado de Rá sobre a terra, de um lado, e dos embates entre os deuses Osíris, Ísis e Hórus e o destruidor Set, in illo tempore; e de seu reflexo no trajeto diário de Rá pela abóbada celeste e em sua jornada noturna através de sua contraparte no Mundo Inferior, o Duat. A temática religiosa central será, para o egípcio, o conflito entre os paladinos da ma’at e as forças da desordem; a importância do faraó para a manutenção da ma’at e a contínua morte e regeneração dos deuses como modelo para a regeneração também da vida humana.


[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.
[2] Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. Pp. 55-86.

História sagrada, historicidade e eternidade

"Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (...). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (...)" | Mais aqui

“Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (…). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (…)” | Mais aqui

“(…) Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o eterno encontro com o mesmo Tempo mítico da origem, santificado pelos deuses, não implicam de modo nenhum uma visão pessimista da vida; ao contrário, é graças a este ‘eterno retorno’ às fontes do sagrado e do real que a existência humana lhe parece salvar-se do nada e da morte.

“A perspectiva muda totalmente quando o sentido da religiosidade cósmica se obscurece. É o que se passa quando, em certas sociedades mais evoluídas, as elites intelectuais se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional. A santificação periódica do Tempo cósmico revela-se então inútil e insignificante. Os deuses já não são acessíveis por meio dos ritmos cósmicos. O significado religioso da repetição dos gestos exemplares é esquecido. Ora, a repetição esvaziada de seu conteúdo conduz necessariamente a uma visão pessimista da existência. Quando deixa de ser um veículo pelo qual se pode restabelecer uma situação primordial e reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, quando é dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico: revela-se como um círculo girando indefinidamente sobre si mesmo, repetindo-se até o infinito. (…)

“A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da época tardia levaram a concepção do Tempo circular aos seus limites extremos. Para citar o belo resumo de H . Ch. Puech: ‘Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao se desenrolar em círculo. Conseqüentemente, todo devir cósmico, assim como a duração deste mundo de geração e corrupção que é o nosso, desenvolver-se-á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclos, no decurso dos quais a mesma realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com uma lei e alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mesma soma de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas também, segundo alguns pensadores do fim da Antiguidade — pitagóricos, estóicos, platônicos —, admite-se que, no interior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, desses aeva, se reproduzem as mesmas situações que se produziram já nos ciclos anteriores e que se reproduzirão nos ciclos subseqüentes – até o infinito. Nenhum acontecimento é único, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo, a condenação e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e anakuklosis, eterno retorno’.

“Quanto às religiões arcaicas e paleorientais, bem como em relação às concepções mítico-filosóficas do Eterno Retorno, tais como foram elaboradas na Índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação importante. Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A idéia do Tempo cíclico é ultrapassada. Iahweh não se manifesta no Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível. Cada nova manifestação de Iahweh na história não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Iahweh contra seu povo, mas não é a mesma que Iahweh exprimira no momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo, o povo escolhido por Iahweh. Assim, o acontecimento histórico ganha um a nova dimensão: torna- se uma teofania.

“O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência .humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Judéia —, mas santificado pela presença do Cristo. Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara — mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia. Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História: já não são fatos que se passaram na origem do Tempo, ‘no começo’. (Acrescentemos porém que para o cristão o Tempo começa de novo com o nascimento do Cristo, porque a encarnação funda uma nova situação do homem no Cosmos.) Em resumo, a História se revela como uma nova dimensão da presença de Deus no mundo. A História volta a ser a História sagrada — tal como foi concebida, dentro de uma perspectiva mítica, nas religiões primitivas e arcaicas.

“O cristianismo conduz a uma teologia e não a uma filosofia da História, pois as intervenções de Deus na história, e sobretudo a Encarnação na pessoa histórica de Jesus Cristo, têm uma finalidade trans-histórica — a salvação do homem.

“Hegel retoma a ideologia judaico-cristã e aplica-a à História universal em sua totalidade: o Espírito universal manifesta se contínua, e unicamente, nos acontecimentos históricos. A História, em sua totalidade, torna- se, pois, uma teofania: tudo o que se passou na História devia passar-se assim, pois assim o quis o Espírito universal. É a via aberta para as diferentes formas de filosofia historicista do século XX. (…) o historicismo é o produto da decomposição do cristianismo: ele concede uma importância decisiva ao acontecimento histórico (o que é uma idéia de origem cristã), mas ao acontecimento histórico como tal, quer dizer, negando-lhe toda possibilidade de revelar uma intenção soteriológica, trans-histórica.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 92 ss.

Nota

“Sede santos como eu sou Santo”

O conceito de imitatio Dei, “imitação de Deus”, é encontrado em diversas tradições religiosas e filosóficas. Na Grécia, por exemplo, aparece nas reflexões de Platão, Aristóteles (para o qual não só os seres humanos, mas tudo o que existe “busca” o Motor Imóvel) e dos estoicos. Aprofundado nas teologias judaica e cristã, chega a desempenhar um papel central em algumas de suas ramificações.

No judaísmo, o conceito de imitatio Dei, em geral considerado uma mitzvá, é melhor expresso na seguinte passagem do Levítico (Lv 19,2): “sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Uma breve, mas interessante discussão a respeito, no contexto judaico, pode ser lida aqui.

No cristianismo, a imitatio Dei, sob a forma também de imitatio Christi, “imitação de Cristo”, constitui um dos princípios basilares da ética e da espiritualidade tanto do catolicismo romano quanto dos cristãos orientais (Igreja Católica Ortodoxa e antigas Igrejas orientais, como as Igrejas Ortodoxas Síría, Copta, Etíope e Apostólica Armênia), entre os quais é por vezes chamado de “vida em Cristo” – estando intimamente relacionado ao conceito de teósis (do grego theosis), isto é, o processo mediante o qual o indivíduo vai se tornando cada vez mais semelhante a Deus com o passar do tempo.

No protestantismo, enquanto a tradição anglo-saxônica aceita a ideia de imitatio Dei, a luterana prefere falar em Conformitas (em alemão, Nachfolge) em vez de Nachahmung (imitação), com o argumento de que Cristo era singular e não pode nem precisa ser imitado, e sim seguido.

Fonte

Imitatio dei: o mito como modelo exemplar


“Destituído de simbolismo religioso, o trabalho (…) torna-se, ao mesmo tempo, ‘opaco’ e extenuante: não revela significado algum, não permite nenhuma ‘abertura’ para o universal, para o mundo do espírito. (…) o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é, pois, uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal.”


 

“O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. ‘Dizer’ um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez ‘dito’, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. (…)

“É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar. (…) Destituído de simbolismo religioso, o trabalho (…) torna-se, ao mesmo tempo, ‘opaco’ e extenuante: não revela significado algum, não permite nenhuma ‘abertura’ para o universal, para o mundo do espírito. (…) Tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por consequência, participa do Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é, pois, uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal. Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos exemplares para seus comportamentos e ações. Em outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real e menos se arrisca a perder-se em ações não-exemplares, ‘subjetivas’ e, em resumo, aberrantes.

“Este é um aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacralidade absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado do mundo. Por esta razão, entre muitos primitivos, os mitos não podem ser recitados indiferentemente em qualquer lugar e época, mas apenas durante as estações ritualmente mais ricas (outono, inverno) ou no intervalo das cerimônias religiosas – numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo.

“Por outro lado, sendo toda criação uma obra divina, e portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia criadora no Mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. A criação faz se por uni acréscimo de substância ontológica. É por isso que o mito que conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas: só ele revela o real, o superabundante, o eficaz. (…) Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma atividade social, econômica, cultural, militar etc.

“(…) A repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo: (1) por um lado, ao imitar os deuses, o homem mantém se no sagrado e, conseqüentemente, na realidade; (2) por outro lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo.

“(…) o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo trans humano, transcendente. Ele só se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos, (…) conservados pelos mitos, pela história das gestas divinas.

“(…) uma tal imitatio dei [“imitação de Deus”] às vezes implica, para os primitivos, uma responsabilidade muito grave. (…) Toda a sua vida religiosa é uma comemoração, uma rememoração. A recordação reatualizada por ritos (portanto, pela reiteração do assassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem deve evitar cuidadosamente esquecer o que se passou in illo tempore. O verdadeiro pecado é o esquecimento: a jovem que, em sua primeira menstruação, permanece três dias numa cabana escura, sem falar com ninguém, comporta-se assim porque a jovem mítica assassinada, tendo se transformado em Lua, fica três dias nas trevas. Se a jovem catamenial infringe o tabu de silêncio e fala, torna-se culpada do esquecimento de um acontecimento primordial. A memória pessoal não entra em jogo: o que conta é rememorar o acontecimento mítico, o único digno de interesse, porque é o único criador. É ao mito primordial que cabe conservar a verdadeira história, a história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reencontrar os princípios e os paradigmas de toda conduta.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 84 ss.

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Assista abaixo ao filme “Tempos modernos”, com sua crítica ao esvaziamento do significado do trabalho, completo:

 

A nostalgia das origens e a obsessão ontológica

“(…) Restabelecer o Tempo sagrado da origem equivale a tornarmo-nos contemporâneos dos deuses, portanto a viver na presença deles – embora esta presença seja ‘misteriosa’, no sentido de que nem sempre é visível. A intencionalidade decifrada na experiência do Espaço e do Tempo sagrados revela o desejo de reintegrar uma situação primordial: aquela em que os deuses e os Antepassados míticos estavam presentes, quer dizer, estavam em vias de criar o Mundo, ou de organizá-lo ou de revelar aos homens os fundamentos da civilização. Essa ‘situação primordial’ não é de ordem histórica, não é cronologicamente calculável; trata se de uma anterioridade mítica, do Tempo da ‘origem’, do que se passou ‘no começo’, in principiam.

“Ora, ‘no começo’ passava-se isto: os Seres divinos ou semidivinos estavam ativos sobre a Terra. A nostalgia das ‘origens’ equivale, pois, a uma nostalgia religiosa. O homem deseja reencontrar a presença ativa dos deuses, deseja igualmente viver no Mundo recente, puro e ‘forte’, tal qual saíra das mãos do Criador. É a nostalgia da perfeição dos primórdios que explica em grande parte o retorno periódico in illo tempore. Em termos cristãos, poder-se-ia dizer que se trata de uma ‘nostalgia do Paraíso’, embora, ao nível das culturas primitivas, o contexto religioso e ideológico seja totalmente diferente do contexto do judaísmo cristianismo. Mas o Tempo mítico que o homem se esforça por reatualizar periodicamente é um Tempo santificado pela presença divina, e pode se dizer que o desejo de viver na presença divina e num mundo perfeito (porque recém-nascido) corresponde à nostalgia de uma situação paradisíaca.

“(…) seria um erro acreditar que o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas recusa-se a assumir a responsabilidade de uma existência autêntica. Pelo contrário, ele assume corajosamente enormes responsabilidades: por exemplo, a de colaborar na criação do Cosmos, criar seu próprio mundo, ou assegurar a vida das plantas e dos animais etc. (…) Trata-se de uma responsabilidade no plano cósmico, diferente das responsabilidades de ordem moral, social ou histórica, as únicas conhecidas pelas civilizações modernas. Na perspectiva da existência profana, o homem só reconhece responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. Para ele, o Universo não constitui um Cosmos, ou seja, uma unidade viva e articulada; é simplesmente a soma das reservas materiais e de energias físicas do planeta.

“(…) aqui, é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma característica essencial do homem das sociedades primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do Ser. No plano existencial, esta experiência traduz-se pela certeza de poder recomeçar periodicamente a vida com o máximo de ‘sorte’. É, com efeito, não somente uma visão otimista da existência, mas também uma adesão total ao Ser. Por todos os seus comportamentos, o homem religioso proclama que só acredita no Ser e que sua participação no Ser lhe é afiançada pela revelação primordial da qual ele é o guardião.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 81 ss.

Nota

Alberto Caeiro

Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma coisa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrem.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos.
O corpo é que lhes é alma
E têm a consciência na própria carne divina.

Alberto Caeiro, in “Poemas Inconjuntos”

Regeneração pelo regresso ao tempo original

Fieis cristãos ortodoxos participam da Festa das Luzes na Igreja do Santo Sepulcro, na Cidade Velha de Jerusalém | Mais aqui

Fieis cristãos ortodoxos participam da Festa das Luzes na Igreja do Santo Sepulcro, na Cidade Velha de Jerusalém | Mais aqui

“[Com relação às características essenciais do Tempo Sagrado,] (…) dois elementos devem reter nossa atenção: (1) pela repetição anual da cosmogonia, o Tempo era regenerado, ou seja, recomeçava como Tempo sagrado, pois coincidia com o illud tempus em que o Mundo viera pela primeira vez à existência; (2) participando ritualmente do ‘fim do Mundo’ e de sua ‘recriação’, o homem tornava-se contemporâneo do illud tempus; portanto, nascia de novo, recomeçava sua existência com a reserva de forças vitais intacta, tal como no momento de seu nascimento.

“Esses fatos são importantes, pois desvendam-nos o segredo do comportamento do homem religioso em relação ao Tempo. Visto que o Tempo sagrado e forte é o Tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente, o homem esforçar-se-á por voltar a unir-se periodicamente a esse Tempo original. Essa reatualização ritual do illud tempus da primeira epifania de uma realidade está na base de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua reatualização.

“O Tempo de origem por excelência é o Tempo da cosmogonia, o instante em que apareceu a mais vasta realidade, o Mundo. É por essa razão que a cosmogonia serve de modelo exemplar a toda ‘criação’, a toda espécie de ‘fazer’. É pela mesma razão que o Tempo cosmogônico serve de modelo a todos os Tempos sagrados: porque, se o Tempo sagrado é aquele em que os deuses se manifestaram e criaram, é evidente que a mais completa manifestação divina e a mais gigantesca criação é a Criação do Mundo.

“Consequentemente, o homem religioso reatualiza a cosmogonia não apenas quando ‘cria’ qualquer coisa (seu ‘mundo pessoal’ – o território habitado – ou uma cidade, uma casa etc.), mas também quando quer assegurar um reinado feliz a um novo soberano, ou quando necessita salvar as colheitas comprometidas, ou quando se trata de uma guerra, de uma expedição marítima etc. Acima de tudo, porém, a recitação ritual do mito cosmogônico desempenha um papel importante nas curas, quando se busca a regeneração do ser humano. (…)

“Mas a ‘primeira manifestação’ de uma realidade equivale à sua ‘criação’ pelos Seres divinos ou semi-divinos: reencontrar o Tempo de origem implica, portanto, a repetição ritual do ato criador dos deuses. A reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos in illo tempore constitui o calendário sagrado, o conjunto das festas. Uma festa desenrola-se sempre no Tempo original. É justamente a reintegração desse Tempo original e sagrado que diferencia o comportamento humano durante a festa daquele de antes ou depois. Em muitos casos, realizam-se durante a festa os mesmos atos dos intervalos não-festivos, mas o homem religioso crê que vive então num outro tempo, que conseguiu reencontrar o illud tempus mítico. (…)

“Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas. Ao nível das civilizações primitivas, tudo o que o homem faz tem um modelo trans-humano; portanto, mesmo fora do tempo festivo, seus gestos imitam os modelos exemplares fixados pelos deuses e pelos Antepassados míticos. Mas essa imitação corre o risco de tornar-se cada vez menos correta. O modelo corre o risco de ser desfigurado ou até esquecido. São as reatualizações periódicas dos gestos divinos — numa palavra, as festas religiosas — que voltam a ensinar aos homens a sacralidade dos modelos. (…)

“Ora, a respeito do tempo sagrado pode se dizer que é sempre o mesmo, que é uma ‘sucessão de eternidades’ (Hubert e Mauss). Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, ‘saem’ de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem-se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que ‘não decorre’ – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável.

“O homem religioso sente necessidade de mergulhar por vezes nesse Tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a duração profana em que se desenrola toda a existência humana. É o eterno presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos. Para dar um só exemplo: é a hierogamia divina, que teve lugar in illo tempore, que tornou possível a união sexual humana. A união entre o deus e a deusa passa-se num instante atemporal, num eterno presente: as uniões sexuais entre os humanos – quando não rituais – desenrolam-se na duração, no tempo profano. O Tempo sagrado, mítico, funda igualmente o Tempo existencial, histórico, pois é o seu modelo exemplar. Em suma, graças aos seres divinos ou semidivinos é que tudo veio à existência. A ‘origem’ das realidades e da própria Vida é religiosa. (…)

“Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta-se a santidade da existência humana como criação divina. No resto do tempo, há sempre o risco de esquecer o que é fundamental: que a existência não é ‘dada’ por aquilo que os modernos chamam de ‘Natureza’, mas é uma criação dos Outros, os deuses ou os Seres semidivinos. Nas festas, ao contrário, reencontra-se a dimensão sagrada da existência, ao se aprender novamente como os deuses ou os Antepassados míticos criaram o homem e lhe ensinaram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos práticos.

“De certo ponto de vista, essa ‘saída’ periódica do Tempo histórico – e sobretudo as consequências que ela acarreta para a existência global do homem religioso  pode parecer uma recusa da história, portanto uma recusa da liberdade criadora. Trata-se, em suma, do eterno retorno in illo tempore, num passado que é ‘mítico’, que nada tem de histórico. Pode se concluir então que a eterna repetição dos gestos exemplares revelados pelos deuses ab origine opõe se a todo o progresso humano e paralisa toda a espontaneidade criadora. Certamente esta conclusão é, em parte, justificada. Em parte somente, porque o homem religioso, mesmo o mais ‘primitivo’, não rejeita, em princípio, o ‘ progresso’: aceita-o, mas confere-lhe uma origem e uma dimensão divinas. Tudo o que, na perspectiva moderna, nos parece ter marcado ‘progressos’ (seja qual for sua natureza: social, cultural, técnica etc.) em relação a uma situação anterior – tudo isto foi assumido pelas diversas sociedades primitivas, no decurso de sua longa história, como outras tantas novas revelações divinas.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 72 ss.

Nota

Clarice Lispector: Água Viva

“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.”

– Clarice Lispector, in “Água Viva”

Tempus Fugit

O fotógrafo canadense Todd McLellan, no livro Things Come Apart: A Teardown Manual for Modern Living, revela as entranhas de 50 objetos do dia a dia.

O fotógrafo canadense Todd McLellan, no livro Things Come Apart: A Teardown Manual for Modern Living, revela as entranhas de 50 objetos do dia a dia.

Por Rubem Alves

Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: Tempus fugit. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes úmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dingue-le-dingue que eu vou para Angola, dingue-le-dingue que eu vou para Angola” de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas — e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não quero morrer…” Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda — (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) — subia numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam, O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. Tempus fugit. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do Tempus fugit pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.

Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, Tempus fugit. Ainda comprarei um outro que diga a mes¬ma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de 5. Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia eterna:
Tempus fugit.
E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões…
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice:
“Estou atrasado, estou atrasado…
Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…

Rubem Alves (1933-2014) foi um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro.

Duração profana e tempo sagrado

Essa iluminura do Livro de Horas da família Aussem, Colônia, Alemanha, início séc. XVI, reflete a crença medieval de que, no momento da consagração, o Cristo, sangrando, efetivamente se manifestava no altar - reforçada pelo fato de que ninguém de fato via o que se passava ali.  | Fonte

Essa iluminura do Livro de Horas da família Aussem, Colônia, Alemanha, início do séc. XVI, reflete a crença medieval de que, no momento da consagração, o Cristo, sangrando, efetivamente se manifestava no altar – reforçada pelo fato de que, devido à distância, ninguém chegava a ver o que se passava ali. | Fonte

“Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem contínuo. Há, por um lado, os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas); por outro lado, há o Tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode ‘passar’, sem perigo, da duração temporal ordinária para o Tempo sagrado.

“Surpreende-nos em primeiro lugar uma diferença essencial entre essas duas qualidades de Tempo: o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Toda festa religiosa, todo Tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, ‘nos primórdios’. Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal ‘ordinária’ e a reintegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por conseqüência, o Tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o Tempo sagrado não ‘flui’, que não constitui uma ‘duração’ irreversível. É um tempo ontológico por excelência, ‘parmenidiano’: mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota. A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado — aquele que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século: é o Tempo criado e santificado pelos deuses por ocasião de suas gesta, que são justamente reatualizadas pela festa. Em outras palavras, reencontra-se na festa a primeira aparição do Tempo sagrado, tal qual ela se efetuou ab origine, in illo tempore. Pois esse Tempo sagrado no qual se desenrola a festa não existia antes das gesta divinas comemoradas pela festa. Ao criarem as diferentes realidades que constituem hoje o Mundo, os Deuses fundaram igualmente o Tempo sagrado, visto que o Tempo contemporâneo de uma criação era necessariamente santificado pela presença e atividades divinas.

“O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não-religioso. O primeiro recusa se a viver unicamente no que, em termos modernos, chamamos de ‘presente histórico’; esforça-se por voltar a unir se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode ser equiparado à ‘Eternidade’. (…)

“Para o homem religioso, (…) a duração temporal profana pode ser ‘parada’ periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um Tempo sagrado, não-histórico (no sentido de que não pertence ao presente histórico). Tal como uma igreja constitui uma rotura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religioso que se realiza no seu interior marca uma rotura na duração temporal profana: já não é o Tempo histórico atual que é presente – o tempo que é vivido, por exemplo, nas ruas vizinhas –, mas o Tempo em que se desenrolou a existência histórica de Jesus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por sua paixão, por sua morte e ressurreição. É preciso, contudo, esclarecer que este exemplo não explicita toda a diferença existente entre o Tempo profano e o Tempo sagrado, pois, em relação às outras religiões, o cristianismo inovou a experiência e o conceito do Tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo. A liturgia cristã desenvolve se num tempo histórico santificado pela encarnação do Filho de Deus. O Tempo sagrado, periodicamente reatualizado nas religiões pré-cristãs (sobretudo nas religiões arcaicas), é um Tempo mítico, quer dizer, um Tempo primordial, não identificável no passado histórico, um Tempo original, no sentido de que brotou ‘de repente’, de que não foi precedido por um outro Tempo, pois nenhum Tempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito.

“É sobretudo essa concepção arcaica do Tempo mítico que nos interessa. (…)”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 63 ss.