Cnum, “o Oleiro Divino”

Cnum como fonte do NIlo

Cnum como fonte do NIlo

Cnum, o deus com cabeça de carneiro, era um dos mais antigos do Egito. Ligado à fonte do Nilo, representava a criatividade e o vigor do rio – e como o rio, em suas cheias anuais, depositava argila e lodo nas margens, acreditava-se que ele criava os corpos das crianças em seu torno, como o oleiro cria as suas peças, e os colocava no ventre de suas mães, ao passo que as almas (ka) lhes seriam insufladas por Heqet, a deusa da fertilidade com cabeça de sapo, no momento do nascimento. Sua atribuição como “Oleiro Divino” e “Aquele que Cria as Coisas de Si Mesmo” se estenderia também aos deuses, aos quais também teria moldado.

Cnum, "o Oleiro Divino"

Cnum, “o Oleiro Divino”

Como terceiro aspecto de Rá, Cnum é o deus do renascimento, da criação e do poente, em geral atribuições de Atum. O culto do deus concentrava-se sobretudo em dois santuários: Elefantina e Esna, ambas locais sagrados. Em Esna, onde o templo data do Período Ptolomaico, Cnum é tido como um deus Criador, sendo chamado de “pai dos pais” – e Neith, deusa (leoa) da guerra Grande Mãe, relacionada às águas primordiais, Criadora e deusa da tecelagem, que teria tecido o mundo inteiro em seu tear, era a “mãe das mães”. Mais tarde, tornaram-se pais de Rá, que também é chamado de Cnum-Rá. (Sobre Elefantina, leia aqui.) Podia ser descrito, ainda, como um deus com cabeça de crocodilo; e, como outro deus de cabeça de carneiro, Amon, relacionado a Min.

Em geral, era representado como um homem com cabeça de carneiro diante de uma roda de oleiro, sobre a qual se veem os corpos das crianças recém-criadas. Como deus da fonte do Nilo, aparece também segurando um frasco de onde jorra um curso d’água. Por fim, ocasionalmente figura em uma imagem composta, como um homem de quatro cabeças – cada uma dela correspondendo a um elemento: Cnum representa a água; Geb, a terra; Xu, o ar; e Osíris, a morte.

Relevo mostrando Cnum (em sua associação com Rá e Amon) e Neith, com cabeça de leoa, em seu templo em Esna.

Relevo mostrando Cnum (em sua associação com Rá e Amon) e Neith, com cabeça de leoa, em seu templo em Esna.

 

Khepri, o escaravelho sagrado

Nun, as águas primordiais em seu aspecto masculino, ergue a barca do deus-Sol Rá

Nun, as águas primordiais em seu aspecto masculino, ergue a barca do deus-Sol Rá

Khepri estava ligado ao escaravelho-sagrado (Scarabaeus sacer – em egípcio, kheprer) porque este põe seus ovos em uma bola de esterco e rola-a por longas distâncias, até encontrar um lugar seguro para que suas larvas amadureçam dentro dela, o que os egípcios viam como um símbolo das forças que movem o sol pelo céu e fazia de Khepri, portanto, uma divindade solar. Como os escaravelhos jovens emergem completamente formados de dentro da esfera do estrume, Khepri representava também a criação e renascimento, sendo especificamente relacionado ao sol nascente e à criação mítica do mundo. Daí a ligação, que os egípcios estabeleceram entre seu nome e o verbo kheper, “desenvolver” ou “vir a ser”; trata-se de vir a ser, mudar, ocorrer, acontecer, existir, fazer emergir, criar.

Khepri, escaravelho-sagrado e sol nascente

Khepri, escaravelho-sagrado e sol nascente

Não havia culto dedicado a Khepri, que em grande parte era subordinado ao deus-sol Rá. Khepri e outra divindade solar, Atum, eram vistos como aspectos da Rá: Khepri era o sol da manhã, Rá era o sol do meio-dia e Atum, o sol da tarde.

Embora sua principal representação fosse como um escaravelho, em algumas pinturas em tumbas e papiros funerários Khepri é representado como um homem com um escaravelho no lugar da cabeça. Também é descrito como um escaravelho empurrando o disco do sol em uma barca solar, erguida por Nun. Aparece ainda nos amuletos de escaravelho que os egípcios usavam ​como jóias, sinetes e, depositados sobre o peito do morto, representando seu coração, dentro do sarcófago.

Peitoral encontrado no túmulo de Tutancâmon: escaravelho alado e o disco do sol

Peitoral encontrado no túmulo de Tutancâmon: escaravelho alado e o disco do sol

Nefertum, “o Lótus do Sol”

Nefertum na Tumba de Horemheb

Nefertum na Tumba de Horemheb, ao lado de um tyet, o “Cinturão de Ísis”

Nefertum (possivelmente “O Belo que Fecha” ou “Aquele que Não Fecha”) era, na mitologia egípcia, originalmente uma flor de lótus que emergiu das águas primordiais na criação do mundo. Representava tanto a primeira luz do sol quanto o delicioso aroma do lótus azul egípcio, Nymphaea caerulea. Alguns de seus epítetos eram “Aquele que é Belo” e “o Lótus do Sol”; uma versão do Livro dos Mortos diz:

“Erga-se, como Nefertum do lótus azul, até as narinas de Rá, e desponte no horizonte a cada dia.”

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

Nefertum, "o Lótus do Sol"

Nefertum, “o Lótus do Sol”

A sacralidade do lótus, especialmente o azul, para os egípcios, estava relacionada à característica dessa flor que se fecha à noite e afunda na água, ressurgindo e voltando a florescer pela manhã, erguendo-se na ponta de um longo caule como se efetivamente desejasse alcançar o céu. Isso fez dela um símbolo natural do Sol, da criação e do renascimento, em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação: Nefertum emerge, como criança, das negras águas primordiais de seu pai, Nun, e tem o céu, Nut, por mãe. Ao amadurecer, torna-se Rá, o próprio Sol.

Nefertum veio ainda a ser visto como filho do deus-criador Ptá, tendo as deusas Sekhmet (e/ou Bastet) por mãe. Na arte, em geral é descrito como um jovem belo, com o lótus azul na cabeça. Como filho de Sekhmet-Bastet, às vezes apresenta-se com cabeça de leão, ou como um leão ou gato reclinando-se.

Nefertum | Karnak

Nefertum | Karnak

Sekhmet: “Aquela Diante de Quem o Mal Estremece”

Estátua de Sekhmet do templo de Mut. Granito, Luxor, Império Novo, ~1403-1365 a.C.

Estátua de Sekhmet do templo de Mut. Granito, Luxor, Império Novo, ~1403-1365 a.C. | Museu Nacional de Arte da Dinamarca

Sekhmet (do egípcio sekhem, “poder” – e, portanto, “a poderosa”, ou ainda “Aquela diante de quem o Mal Estremece”, “Senhora do Terror”, “Senhora da Carnificina”, “Aquela que Marreta”), originalmente uma deusa guerreira e da cura do Alto Egito (além de ligada ao ciclo menstrual das mulheres), era descrita como uma leoa, o mais feroz caçador conhecido dos egípcios. Dizia-se que seu hálito havia formado o deserto. Era considerada protetora dos faraós, a quem conduzia nas batalhas. A fim de aplacar sua fúria, não só eram celebrados festivais após encerradas as escaramuças, para pôr fim à destruição, como também suas sacerdotisas realizavam um ritual diário diante de uma estátua diferente da deusa em cada dia do ano – o que fez com que houvesse muitas imagens da deusa preservadas.

Festival da Embriaguez no templo de Mut, em Luxor | Via

Festival da Embriaguez no templo de Mut, em Luxor | Via

No primeiro mês do ano egípcio, provavelmente em conexão com as celebrações do Ano Novo em seu aspecto orgiástico, no Festival de Hathor para Pacificar Sekhmet os egípcios dançavam e tocavam música para apaziguar a selvageria da deusa, consumindo ritualmente grandes quantidades de vinho a fim de reproduzir a embriaguez que pacificou sua ira quando ela estava prestes a destruir a humanidade, conforme relatado aqui. Outro objetivo era evitar cheias excessivas no início de cada ano, quando o Nilo era tingido de vermelho pelos sedimentos oriundos de sua cabeceira e cabia a Sekhmet engolir o transbordamento, a fim de salvar a humanidade.

Sekhmet, "Aquela Diante de Quem o Mal Estremece"

Sekhmet, “Aquela Diante de Quem o Mal Estremece”

Segundo algumas versões, Sekhmet tinha como filho Maahes, antigo deus egípcio da guerra com cabeça de leão, cujo nome significa “aquele que é verdadeiro ao lado dela” e que seria o filho da deusa felina (Bast no Baixo Egito, Sekhmet no Alto Egito), cuja natureza compartilhava. Em Mênfis, Sekhmet tinha por consorte Ptá e por filho, Nefertum.

Seu culto era tão dominante na cultura que quando o primeiro faraó da XII dinastia, Amenemhat I, transferiu a capital para Itjtawy, o centro de seu culto foi transferido junto. Também apresentava um aspecto solar, sendo às vezes chamada de “filha de Rá” e ligada às deusas Hathor e Bast. Leva o disco solar e o uraeus, que a associam a Wadjet e à realeza, o que permite sua interpretação como árbitra divina da deusa Maat no tribunal de Osíris e a associa ao wedjat (e, posteriormente, ao Olho de Rá), e também a Tefnut, em seu aspecto leonino.

Baixo-relevo da deusa Sekhmet no Templo de Sobek e Haroeris, Kom Ombo (Egito)

Baixo-relevo da deusa Sekhmet no Templo de Sobek e Haroeris, Kom Ombo (Egito)

Ptá, “o muito antigo”

Da direita para a esquerda: Rá-Horakhty, o divinizado Ramsés II, Amon-Rá e Ptá no Santo dos Santos de Abu Simbel. Duas vezes ao ano, em 22 de fevereiro e 22 de outubro, os raios do sol penetram no santuário e atingem em cheio os rostos de pedra de Amon, Rá-Horakhti e Ramsés II por 20 minutos. O rosto de Ptá, o deus do mundo inferior, permanece na escuridão.

Da direita para a esquerda: Rá-Horakhty, o divinizado Ramsés II, Amon-Rá e Ptá no Santo dos Santos de Abu Simbel. Duas vezes ao ano, em 22 de fevereiro e 22 de outubro, os raios do sol penetram no santuário e atingem em cheio os rostos de pedra de Amon, Rá-Horakhti e Ramsés II por 20 minutos. O rosto de Ptá, o deus do mundo inferior, permanece nas sombras.

Ptá é o demiurgo de Mênfis, deus dos artesãos (e por isso identificado pelos gregos com Hefesto), ferreiros, carpinteiros, construtores de embarcações, escultores e arquitetos. O próprio nome “Egito” deriva do nome de seu principal centro de culto, Mênfis, em egípcio arcaico Hikuptah, que significa “Casa da Alma de Ptá” – palavra que passou para o grego antigo como Αιγυπτος (Aiguptos), em seguida para o latim como Aegyptus.

Ptá, "o muito antigo"

Ptá, “o muito antigo”

Simultaneamente Nun e Naunet, é proclamado o maior dos deuses, criador de tudo: foi ele “quem fez com que os deuses existissem” (Eliade, p. 95). Atum é apenas o criador do primeiro casal divino e um agente da vontade de Ptá — fruto de seu espírito (o “coração”) e de seu verbo (a “língua”): “Aquele que se manifestou como coração, aquele que se manifestou como língua, sob a aparência de Atum, é Ptá, o muito antigo” (ibidem). Outros de seus epítetos incluem “o de belo rosto”, “o senhor da verdade”, “senhor da justiça”, “o que ouve orações”, “o senhor das cerimônias”, “o senhor da eternidade”.

O deus havia gerado também o ka, ou alma, de cada ser, na medida em que, uma vez criados, os deuses haviam penetrado seus corpos visíveis, entrando “em todas as espécies de plantas, pedras, argila, em toda coisa que cresce no seu relevo (isto é, a Terra) e pelas quais eles podem manifestar-se. É responsável, portanto, pela preservação do mundo e da realeza.

Em geral Ptá é representado como um homem de pele verde, envolto em uma mortalha, com a barba divina e segurando um cetro que combina três símbolos de poder, indicadores dos três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida);  e o pilar djed (estabilidade).

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Khonsu: a luz no meio da noite

Khonsu, Templo de Kom Ombo | Foto: Steve F-E-Cameron

Khonsu, Templo de Kom Ombo | Foto: Steve F-E-Cameron

Seu nome, que significa “Viajante” (ou ainda “Aquele que Encontra o Caminho”, “o Defensor” ou “o Protetor”) reflete o fato de que a Lua (iah, em egípcio) viaja através do céu noturno — e, conforme se acreditava, protegia os viajantes. Como deus da luz no meio da noite, a proteção de Khonsu era invocada tanto contra animais selvagens quanto para aumentar a virilidade masculina e ajudar na cura. Dizia-se que, quando Khonsu fazia brilhar a lua crescente, as mulheres concebiam, o gado ficava fértil e todas as narinas e todas as gargantas se enchiam de ar fresco.

Como “Khonsu” também pode significar “placenta do rei”, nos primeiros tempos acreditava-se que ele matasse os inimigos do faraó e lhes extraía as entranhas para criar algo semelhante a uma placenta para o rei — aspecto sanguinário que fazia com que fosse denominado, em textos antigos como os dos Livros das Pirâmides e dos Sarcófagos, como “Aquele que vive dos corações”. Com o tempo, porém, esse aspecto feroz se abrandaria; acabou sendo associado também de modo mais literal às placentas e, como deificação da placenta faraônica, tornou-se um deus relacionado ao parto. Sua reputação como curador ultrapassou as fronteiras do Egito; uma estela registra como uma princesa de Bekhten foi imediatamente curada de uma doença com a chegada de uma imagem de Khonsu [em inglês, aqui]. E Ptolomeu IV, uma vez curado de uma doença, passou a se intitular “Amado de Khonsu, que Protege Sua Majestade e Afasta os Maus Espíritos”. No Novo Império, chegou a ser descrito como o “Maior Deus dos Grandes Deuses”, tendo substituído Montu como filho de Mut na tríade tebana; em seu templo em Karnak, há uma cosmogonia em que ele é descrito como a grande cobra que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Khonsu, deus-menino e deus-falcão

Khonsu, deus-menino e deus-falcão

Khonsu costuma ser retratado como uma múmia com o símbolo da infância, a cabeça raspada deixando apenas uma madeixa na lateral, e, às vezes, com o colar menat e o cajado e o açoite. Tem íntima ligação com outras crianças divinas, como Hórus, e às vezes apresenta-se com cabeça de falcão, adornada com o disco solar e o crescente da lua nova, que sustenta o disco da lua cheia. Ocasionalmente se apresenta montando um ganso, carneiro ou dois crocodilos. Seu animal sagrado era o babuíno, considerado um animal lunar pelos antigos egípcios.

Montu: o disco solar “Nômade”

Jóia representando Montu, do túmulo de Tutancâmon, com o shen, símbolo de proteção, e o ankh, símbolo da vida eterna | Foto: Jean-Pierre Dalbéra

Jóia representando Montu, do túmulo de Tutancâmon, com o shen, símbolo da proteção asseguradora da eternidade, e o ankh, símbolo da vida eterna | Foto: Jean-Pierre Dalbéra

Deus antigo (de quem havia, em Tebas, um culto anterior ao de Amon ) cujo nome significa “nômade”, Montu originalmente era uma manifestação do efeito escaldante do sol, Rá — e, como tal, aparecia sob o epíteto Montu-Rá, divindade suprema do Alto Egito até a ascensão de Amon.

O antigo deus egípcio da guerra, Montu, costuma ser descrito como um homem com cabeça de falcão; distingue-se de outros deuses-falcão pelo par de plumas retas na cabeça. Também era representado em forma de falcão com as duas penas e/ou o disco solar. Posteriormente, era às vezes descrito como homem com cabeça de touro.

O antigo deus egípcio da guerra, Montu, com cabeça de falcão

A destrutividade dessa característica o levou a ganhar contornos de um guerreiro e, por fim, a consolidar-se como um deus da guerra; e, de fato, o calor escorchante do sol egípcio muitas vezes deve ter lutado ao lado deles e sido decisivo na vitória contra os inimigos. Posteriormente, devido à associação da fúria dos touros com a força e a guerra, Montu foi associado à imagem de um touro branco com um rosto negro, e os maiores reis-generais egípcios eram chamados de “Touros Poderosos”, os “filhos de Montu”. Assim, na narrativa da batalha de Kadesh, lê-se que Ramsés II, ao avistar o inimigo, “enfureceu-se com eles como Montu, Senhor de Tebas“.

Com a ascensão de Amon em Tebas, chegou a ser adotado por Mut como filho e a integrar a tríade tebana, mas foi gradualmente perdendo suas características agressivas até ser substituído por Khonsu.

Era retratado como um homem com cabeça ou de falcão (o céu) ou de touro (a potência e a força), e distinguia-se de outros deuses-falcão pelo disco solar e/ou par de plumas retas na cabeça. Podia levar armas nas mãos, como cimitarras, arcos e flechas ou facas.

Montu representado com cabeça de touro. Período Ptolomaico (332-30 aC). | Museu do Louvre

Montu representado com cabeça de touro. Período Ptolomaico (332-30 aC). | Museu do Louvre

Mut: a “Mãe”

Mut com o abutre por coroa. Parede do Templo de Ramsés II, Abidos, Egito.

Mut com o abutre por coroa e o cetro was. Parede do Templo de Ramsés II, Abidos, Egito.

Na cosmogonia tebana, Amon tinha por consorte não Amaunet, mas Mut — palavra que significava “mãe” em egípcio e era, originalmente, um mero atributo das águas primordiais do cosmos em seu aspecto feminino, Naunet, de onde tudo emergira por partenogênese; com o tempo, porém, maternidade e águas cósmicas diferenciaram-se e as duas identidades se separaram. Assim, Mut ganhou contornos de uma deusa criadora, como a Grande Mãe que engendrara o Cosmos; alguns de seus títulos eram “Mãe do Mundo”, “Olho de Rá”, “Rainha das Deusas”, “Senhora dos Céus”, “Mãe dos Deuses”, “Aquela que Dá À Luz”, “A Não-Nascida de Ninguém”.

"O hieróglifo que representava seu nome e a palavra “mãe” era um abutre — a encarnação suprema da maternidade, visto que, para os egípcios, todas essas aves, por não apresentarem dimorfismo sexual, eram do sexo feminino e concebiam seus filhos fertilizadas pelo vento (Amon), outro conceito partenogênico."

O abutre, animal-símbolo de Mut

Mut, "mãe"

Mut, “mãe”

O hieróglifo que representava seu nome e a palavra “mãe” era um abutre — a encarnação suprema da maternidade, visto que, para os egípcios, todas essas aves, por não apresentarem dimorfismo sexual, eram do sexo feminino e concebiam seus filhos fertilizadas pelo vento (Amon), outro conceito partenogênico.

Como Grande Mãe, Mut foi se modificando, em seus vários aspectos, ao longo dos milhares de anos de duração da cultura egípcia. Tanto o Baixo quanto o Alto Egito contavam com suas próprias padroeiras divinas: respectivamente, Wadjet, a naja de bote armado, e Nekhbet, o abutre (incorporadas, ambas, à realeza como símbolos da unificação do Egito). Dispunham também de deusas guerreiras, sob a forma de leoas — Bastet e Sekhmet, respectivamente. À medida que Tebas adquiriu proeminência, Mut foi absorvendo essas deusas guerreiras como parte de seus atributos. Assim, tornou-se Mut-Wadjet-Bastet; Mut-Sekhmet-Bastet (Wadjet, depois de incorporar Bastet); assimilou também Menhit, outra deusa-leoa e esposa de seu filho adotivo, tornando-se Mut-Sekhmet-Bastet-Menhit; por fim, tornou-se Mut-Nekhbet.

Quando a autoridade de Tebas começou a cair, Amon foi assimilado a Rá e Mut foi assimilada a Hathor, a deusa-vaca, identificada como mãe de Hórus e esposa de Rá. Posteriormente, quando Rá assimilou Atum, a própria Enéade foi absorvido; assim, Mut-Hathor passou a ser identificada como Ísis (ou Ísis-Hathor, ou Mut-Ísis-Nekhbet), a mais importante figura feminina da Enéade e patrona da rainha. Com o êxito simbólico da Enéade, a tríade composta por Mut, Hathor e Ísis foi reduzida a Ísis, e sob essa forma derradeira seu culto resistiria até o século VII d.C., tendo se espalhado pela Grécia e Roma e chegado à Grã-Bretanha.

Mut: a "mãe"

Mut: a “mãe”

Em decorrência dessas assimilações, Mut é por vezes descrita como uma cobra, gato, vaca ou leoa, além de abutre. Na arte, Mut em geral era retratada como uma mulher com asas de abutre, segurando um ankh e portando a coroa unida do Alto e Baixo Egito, de vestido vermelho ou azul, com a pena da deusa Maat a seus pés. Antes do final do Novo Império quase todas as imagens de figuras femininas com a coroa dupla eram representações de Mut, identificada como “Senhora do Céu, Senhora de Todos os Deuses”.

Após a revolução de Akhenaton e a posterior restauração das crenças e práticas tradicionais, a ênfase na piedade pessoal desdobrou-se em uma maior confiança na proteção divina, e não humana, do indivíduo. Durante o reinado de Ramsés II, um devoto de Mut doou todos os seus bens para seu templo e gravou em seu túmulo:

“E ele [Kiki] encontrou Mut à frente dos deuses, Destino e Fortuna na mão; a Duração da Vida e o Sopro da Vida são regidos por ela (…) Não escolhi um protetor entre os homens. Não busquei para mim um protetor entre os grandes (…) Meu coração está repleto de minha senhora. Não temo ninguém. Atravesso as noites mergulhado no mais sereno dos sonos, porque tenho uma protetora.”

Fonte

A origem do Homem

"O deus Xu, os oito deuses da Ogdóade e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (...)"

“O deus Xu, os oito deuses Heh e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (…)”

A origem do Homem não é um aspecto relevante nas cosmogonias egípcias. Se as crianças humanas são moldadas em argila pelo deus Cnum e por ele colocadas no ventre de suas mães, os primeiros Homens (em egípcio, erme, “lágrima”) nascem das lágrimas vertidas por Rá-Atum: uma vez criados por Atum, Xu e Tefnut, curiosos sobre as águas primordiais que os cercavam, foram explorá-las e desapareceram na escuridão. Incapaz de suportar sua perda, Atum enviou um mensageiro de fogo, o Olho de Rá, para encontrar seus filhos. As lágrimas de alegria por ele derramadas quando retornaram foram os primeiros seres humanos. Outras versões atribuem as lágrimas a outros aspectos de Rá, como a criança divina Nefertum na cosmogonia de Hermópolis. De todo modo, as lágrimas seriam um prenúncio da imperfeição da natureza humana e da tristeza de suas vidas.

A partir do Primeiro Período Intermediário (~2198-1938 a.C.), quando o Egito dividiu-se em dois e só voltou a se unificar após uma brutal guerra civil, operou-se uma importante transformação religiosa: o direito à vida após a morte, até então exclusivos dos faraós e suas famílias, foi estendido a todos os nobres e oficiais, ou seja, todos os que pudessem pagar pelos ritos necessários para assegurar esse mesmo direito. É dessa época (Império Médio) que datam os textos coligidos sob o título “Livro da Vaca Celeste”, que parece refletir uma elaboração da traumática ruptura da ordem vivenciada pelos egípcios no período anterior.

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A Tríade Tebana

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

O nome egípcio de Tebas, cidade do Alto Egito próxima à Núbia, era Waset (“Cidade do cetro”). A designação “Tebas”, de origem grega, é uma corruptela de Ta-opet (ou Ipet-isut, “O mais seleto dos lugares”), nome egípcio da área do complexo de templos da cidade, Karnak – que permaneceu em construção e expansão durante 2 mil anos, em vista da crença egípcia de que o templo precisava ser mantido “vivo”.

Cidade de pouca monta durante boa parte da história egípcia, a partir do Império Novo Tebas adquiriu relevância por ser a sede dos reis fundadores da XVIII Dinastia, responsáveis pela expulsão dos hicsos, primeiros estrangeiros a invadir e dominar o Egito.

Hieróglifo de mut, "mãe": o abutre era, para os egípcios, o máximo da maternidade

Mut, “mãe”

O principal deus da cidade era Amon, associado ao oculto e, em Tebas, demiurgo, retirando essa função de Rá — o que fez de Tebas a primeira cidade criada e, portanto, centro do Mundo e modelo para as demais. Na elaboração tebana, Amon tinha por consorte não Amaunet, mas Mut — palavra que significava “mãe” em egípcio e era, originalmente, um atributo das águas primordiais do cosmos em seu aspecto feminino, Naunet; com o tempo, porém, maternidade e águas cósmicas diferenciaram-se e as duas identidades se separaram. Assim, Mut ganhou contornos de uma deusa criadora, como a Grande Mãe que engendrara o Cosmos. O hieróglifo que representava seu nome e a palavra “mãe” era um abutre — a encarnação suprema da maternidade, visto que, para os egípcios, todas essas aves, por não apresentarem dimorfismo sexual, eram do sexo feminino e concebiam seus filhos fertilizadas pelo vento (Amon), outro conceito partenogênico.

Compondo a tríade central do panteão tebano, dizia-se que Mut havia adotado Montu. Deus antigo (de quem havia um culto anterior em Tebas, como indicam as fundações de um santuário anterior ao templo dedicado ao deus, a nordeste do de Amon) cujo nome significa “nômade”, Montu originalmente era uma manifestação do efeito escaldante do sol, Rá — e, como tal, aparecia sob o epíteto Montu-Rá, divindade suprema do Alto Egito até a ascensão de Amon.

Planta do complexo de templos de Karnak

Planta do complexo de templos de Karnak

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Ver no Google Maps

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Explore a área no Google Maps

Complexo de templos de Karnak | Vídeo da Unesco

Com o tempo, porém, em vista da benignidade de Amon e Mut (e sob a justificativa de que o isheru, o lago sagrado junto ao templo de Mut em Karnak, tinha a forma de uma lua crescente), Montu foi perdendo seus atributos agressivos até acabar sendo substituído como filho de Mut pelo deus lunar Khonsu — cujo templo em Karnak ostenta em uma parede uma cosmogonia em que Khonsu é descrito como a grande serpente que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Necrópoles de Tebas (Vale dos Reis
e Vale das Rainhas) | Vídeo da Unesco