As coroas do Egito: as “Duas Potências”

A Paleta de Narmer, de ~3000 a.C., mostrando o rei Narmer, do Alto Egito, com o hedjet, subjugando o rei do Baixo Egito, com o deshret

A Paleta de Narmer, de ~3000 a.C., mostrando o rei Narmer, do Alto Egito, com o hedjet, em seu embate com o rei do Baixo Egito, com o deshret. Sua vitória final é assinalada pela presença de Hórus, o falcão, que mantém preso um homem entre papiros, símbolo do Delta do Nilo.

Pschent era o nome da coroa dupla do Egito, à qual os antigos egípcios se referiam como sekhemti, “as Duas Potências” – símbolo do domínio do faraó sobre o país unificado, “As Duas Terras”, como chamavam seus habitantes. Era uma combinação do deshret, a coroa vermelha do Baixo Egito (com sua projeção espiralada fazendo referência a Wadjet), com o hedjet, a coroa branca do Alto Egito (referência a Nekhbet, o branco abutre). Deshret era também o nome do deserto que ladeava o kemet, a fértil bacia do rio Nilo – e que, com a permanente ameaça que representava sua terra vermelha e seca para as terras negras das margens do rio, era associado a Set em sua luta contra Osíris.

Da esquerda para a direita: o deshret, o hedjet e os dois juntos, o pschent

Da esquerda para a direita: o deshret, o hedjet e os dois juntos, o pschent

O atef, coroa específica de Osíris, é o hedjet do Alto Egito ladeado por duas penas de avestruz, a pena de Maat e, como tal, referência ao papel de Osíris como supremo juiz e paladino da ma’at. As penas são identificadas como sendo de avestruz por sua curva nas extremidades superiores, com um ligeiro alargamento em direção à base, em contraste com o par de penas retas e mais estreitas da cauda do falcão, usadas na cabeça por Amon.

Osíris (à esquerda, com o atef com penas de avestruz) e Amon (à direita, com penas de falcão)

Osíris (à esquerda, com o atef com penas de avestruz) e Amon (à direita, com penas de falcão)

Uraeus: a naja de bote armado

O uraeus em uma máscara mortuária de Tutancâmon

O uraeus em uma máscara mortuária de Tutancâmon, com a naja (Wadjet, padroeira do Baixo Egito) e o abutre (Nekhbet, padroeira do Alto Egito) representando o Reino Unido.

O uraeus é a naja de bote armado usada como símbolo da soberania, realeza, divindade e autoridade divina no Egito. Representa Wadjet, deusa primitiva do Baixo Egito que era padroeira do Delta do Nilo e protetora de todo o Baixo Egito.

Os faraós usavam-no como ornamento ou no alto da cabeça ou na testa, indicando a proteção de Wadjet e seu asseguramento da soberania do poder do monarca – e, portanto, sua legitimidade. Remete também às características ctônicas das serpentes e à sua relação com a imortalidade, uma vez que suas trocas de pele são entendidas como indicadoras de um ciclo contínuo de morte e renascimento.

Nekhbet, a deusa-abutre, padroeira do Alto Egito

Nekhbet, a deusa-abutre, padroeira do Alto Egito

Com a unificação do Egito, a imagem de Nekhbet, deusa identificada com o abutre e padroeira do Alto Egito, juntou-se à de Wadjet na coroa dos faraós, sem que as duas divindades se fundissem, no sincretismo recorrente no Egito. Juntas, eram conhecidas como “as duas senhoras”, protetoras comuns e patronas do Reino Unido.

Mais tarde, à medida que o culto de Ísis foi absorvendo o das demais Grandes Deusas egípcias,  dizia-se que o primeiro uraeus fora criado por Ísis, a partir do pó da terra e da saliva de Rá, e usado pela deusa para conquistar o trono do Egito para Osíris.

Acreditava-se que o uraeus protegesse seu portador cuspindo fogo pelo olho da deusa – que em épocas posteriores seria facilmente associado a outros “olhos” como entidades protetoras, tais como o Olho da Lua, o Olho de Hathor, o Olho de Hórus e o Olho de Rá.

O shenu, envoltório da proteção eterna

A enorme quantidade de shenus ostentada neste templo erguido pela rainha-faraó Hatshepsut, que teria seus cartuchos e seu rosto apagados dos monumentos e registros por seu sucessor, Tutmés III, parece ser uma tentativa de proteção e um bom reflexo das tensões entre a faraó e seu sucessor.

A enorme quantidade de shenus ostentada neste templo erguido pela rainha-faraó Hatshepsut, que teria seus cartuchos e seu rosto apagados dos monumentos e registros por seu sucessor, Tutmés III, parece ser uma tentativa de proteção e um reflexo das tensões entre a faraó e seu sucessor.

O shenu, ou “anel shen” [em inglês, shen ring], é um círculo com uma linha tangente a ele, representado nos hieróglifos como uma corda com um laço estilizado. Shen significa, em egípcio antigo, “cercar”, “rodear”, “envolver”, de modo que o shenu representa proteção eterna.  Quando esticado para conter outros objetos, entendia-se que estes estavam eternamente protegidos. Quando contém o nome do faraó o símbolo, é o “cartucho” (no sentido de “invólucro”, “envoltório”) que mantém fechado e protegido o nome real.

Costuma aparecer ligado a vários tipos de cetros, símbolos de autoridade ou poder, representando a eternidade desse poder; com frequência aparece também nas garras do falcão (Hórus) ou do abutre (Mut), que, estendem suas asas sobre a cena apresentada.

Heh, “o deus de milhões de anos”

"Uma das representações mais perfeitas de Heh figura em uma cadeira cerimonial encontrada na tumba de Tutancâmon: de joelhos, sobre o símbolo do ouro, nub, com um ankh no braço e uma haste de palmeira em cada mão; cada uma delas termina em um disco solar com um uraeus. Sobre sua cabeça, o disco solar é protegido por um uraeus duplo."

“Uma das representações mais perfeitas de Heh figura em uma cadeira cerimonial encontrada na tumba de Tutancâmon: de joelhos, sobre o símbolo do ouro, nub, com um ankh no braço e uma haste de palmeira em cada mão; cada uma delas termina em um disco solar com um uraeus. Sobre sua cabeça, o disco solar é protegido por um uraeus duplo.”

Na ogdóade de Hermópolis, Heh era a deificação a eternidade e o espaço infinito (heh significa, em egípcio, “milhão”, e se refere indiscriminadamente ao incomensuravelmente grande tanto em termos de tempo quanto de espaço, dimensões que, no domínio do sagrado, são indistintas; daí o também ser conhecido como o “deus de milhões de anos”). Sua contraparte feminina era Hauhet, a forma feminina de seu nome.

Heh, "o deus de um milhão de anos"

Heh, “o deus de um milhão de anos”

Como os demais princípios ontológicos primordiais da ogdóade, sua forma masculina apresentava-se como um sapo ou homem com cabeça de sapo; sua forma feminina, como uma cobra ou mulher com cabeça de cobra. Em sua representação antropomórfica, ele é mostrado ajoelhado (um joelho erguido), com uma haste de palma em cada mão (ou apenas uma), às vezes com outra no cabelo. Os galhos de palmeira representavam vida longa para os egípcios, pois, na contagem cerimonial do tempo, represetavam os anos passados por intermédio dos entalhes neles gravados – dai o uso da folha de palma como símbolo hieroglífico para “ano”. Outro elemento presente é o shenu na base de cada haste, uma referência à proteção e segurança garantidoras da eternidade.

Heh, "milhão"

Heh, “milhão”

Em seu hieróglifo, Heh aparece ajoelhado, de braços erguidos, em referência ao seu desdobramento em oito deuses Heh da “eternidade”. Agrupados em pares, eles sustentam o céu – e cada um desses pilares proteger uma região celeste, como no Livro da Vaca Celeste. Nesse papel, Heh torna-se uma hipóstase de Xu, o deus do ar que separa o céu (Nut) da terra (Geb). Os quatro pares são percebidos como quatro ventos, mas eram considerados negativos, como que surgidos da boca de Set.

Heh no Papiro de Ani (Pl. 8), fundido com Nun, as águas primordiais: "'Milhões de anos'" é o nome de um, 'Lago Verde' é o do outro; um lago de natrão, e um de salitre; ou (como outros dizem), 'Aquele que Atravessa Milhões de Anos' é o nome de um, 'Grande Lago verde' é o do outro; ou (como outros dizem), 'O Gerador de Milhões de Anos' é o nome de um, 'Lago Verde' é o do outro."

Heh no Papiro de Ani (Pl. 8), fundido com Nun, as águas primordiais: “‘Milhões de anos'” é o nome de um, ‘Lago Verde’ é o do outro; um lago de natrão, e um de salitre; ou (como outros dizem), ‘Aquele que Atravessa Milhões de Anos’ é o nome de um, ‘Grande Lago verde’ é o do outro; ou (como outros dizem), ‘O Gerador de Milhões de Anos’ é o nome de um, ‘Lago Verde’ é o do outro.”

Como deus relativamente abstrato, Heh não possuía nenhum centro de culto ou santuário conhecido; sua veneração girava em torno de simbolismos e crenças pessoais. A imagem do deus e seus elementos iconográficos refletiam o desejo de milhões de anos de vida ou poder, no caso dos governantes; como tal, encontra representação frequente em amuletos, itens de prestígio e iconografia real do fim de Império Antigo em diante.

Uma das representações mais perfeitas de Heh figura em uma cadeira cerimonial encontrada na tumba de Tutancâmon: de joelhos, sobre o símbolo do ouro, nub, com um ankh no braço e uma haste de palmeira em cada mão; cada uma delas termina em um disco solar com um uraeus. Sobre sua cabeça, o disco solar é protegido por um uraeus duplo.

Khepri, o escaravelho sagrado

Nun, as águas primordiais em seu aspecto masculino, ergue a barca do deus-Sol Rá

Nun, as águas primordiais em seu aspecto masculino, ergue a barca do deus-Sol Rá

Khepri estava ligado ao escaravelho-sagrado (Scarabaeus sacer – em egípcio, kheprer) porque este põe seus ovos em uma bola de esterco e rola-a por longas distâncias, até encontrar um lugar seguro para que suas larvas amadureçam dentro dela, o que os egípcios viam como um símbolo das forças que movem o sol pelo céu e fazia de Khepri, portanto, uma divindade solar. Como os escaravelhos jovens emergem completamente formados de dentro da esfera do estrume, Khepri representava também a criação e renascimento, sendo especificamente relacionado ao sol nascente e à criação mítica do mundo. Daí a ligação, que os egípcios estabeleceram entre seu nome e o verbo kheper, “desenvolver” ou “vir a ser”; trata-se de vir a ser, mudar, ocorrer, acontecer, existir, fazer emergir, criar.

Khepri, escaravelho-sagrado e sol nascente

Khepri, escaravelho-sagrado e sol nascente

Não havia culto dedicado a Khepri, que em grande parte era subordinado ao deus-sol Rá. Khepri e outra divindade solar, Atum, eram vistos como aspectos da Rá: Khepri era o sol da manhã, Rá era o sol do meio-dia e Atum, o sol da tarde.

Embora sua principal representação fosse como um escaravelho, em algumas pinturas em tumbas e papiros funerários Khepri é representado como um homem com um escaravelho no lugar da cabeça. Também é descrito como um escaravelho empurrando o disco do sol em uma barca solar, erguida por Nun. Aparece ainda nos amuletos de escaravelho que os egípcios usavam ​como jóias, sinetes e, depositados sobre o peito do morto, representando seu coração, dentro do sarcófago.

Peitoral encontrado no túmulo de Tutancâmon: escaravelho alado e o disco do sol

Peitoral encontrado no túmulo de Tutancâmon: escaravelho alado e o disco do sol

Nefertum, “o Lótus do Sol”

Nefertum na Tumba de Horemheb

Nefertum na Tumba de Horemheb, ao lado de um tyet, o “Cinturão de Ísis”

Nefertum (possivelmente “O Belo que Fecha” ou “Aquele que Não Fecha”) era, na mitologia egípcia, originalmente uma flor de lótus que emergiu das águas primordiais na criação do mundo. Representava tanto a primeira luz do sol quanto o delicioso aroma do lótus azul egípcio, Nymphaea caerulea. Alguns de seus epítetos eram “Aquele que é Belo” e “o Lótus do Sol”; uma versão do Livro dos Mortos diz:

“Erga-se, como Nefertum do lótus azul, até as narinas de Rá, e desponte no horizonte a cada dia.”

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

Nefertum, "o Lótus do Sol"

Nefertum, “o Lótus do Sol”

A sacralidade do lótus, especialmente o azul, para os egípcios, estava relacionada à característica dessa flor que se fecha à noite e afunda na água, ressurgindo e voltando a florescer pela manhã, erguendo-se na ponta de um longo caule como se efetivamente desejasse alcançar o céu. Isso fez dela um símbolo natural do Sol, da criação e do renascimento, em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação: Nefertum emerge, como criança, das negras águas primordiais de seu pai, Nun, e tem o céu, Nut, por mãe. Ao amadurecer, torna-se Rá, o próprio Sol.

Nefertum veio ainda a ser visto como filho do deus-criador Ptá, tendo as deusas Sekhmet (e/ou Bastet) por mãe. Na arte, em geral é descrito como um jovem belo, com o lótus azul na cabeça. Como filho de Sekhmet-Bastet, às vezes apresenta-se com cabeça de leão, ou como um leão ou gato reclinando-se.

Nefertum | Karnak

Nefertum | Karnak