Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

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A nostalgia das origens e a obsessão ontológica

“(…) Restabelecer o Tempo sagrado da origem equivale a tornarmo-nos contemporâneos dos deuses, portanto a viver na presença deles – embora esta presença seja ‘misteriosa’, no sentido de que nem sempre é visível. A intencionalidade decifrada na experiência do Espaço e do Tempo sagrados revela o desejo de reintegrar uma situação primordial: aquela em que os deuses e os Antepassados míticos estavam presentes, quer dizer, estavam em vias de criar o Mundo, ou de organizá-lo ou de revelar aos homens os fundamentos da civilização. Essa ‘situação primordial’ não é de ordem histórica, não é cronologicamente calculável; trata se de uma anterioridade mítica, do Tempo da ‘origem’, do que se passou ‘no começo’, in principiam.

“Ora, ‘no começo’ passava-se isto: os Seres divinos ou semidivinos estavam ativos sobre a Terra. A nostalgia das ‘origens’ equivale, pois, a uma nostalgia religiosa. O homem deseja reencontrar a presença ativa dos deuses, deseja igualmente viver no Mundo recente, puro e ‘forte’, tal qual saíra das mãos do Criador. É a nostalgia da perfeição dos primórdios que explica em grande parte o retorno periódico in illo tempore. Em termos cristãos, poder-se-ia dizer que se trata de uma ‘nostalgia do Paraíso’, embora, ao nível das culturas primitivas, o contexto religioso e ideológico seja totalmente diferente do contexto do judaísmo cristianismo. Mas o Tempo mítico que o homem se esforça por reatualizar periodicamente é um Tempo santificado pela presença divina, e pode se dizer que o desejo de viver na presença divina e num mundo perfeito (porque recém-nascido) corresponde à nostalgia de uma situação paradisíaca.

“(…) seria um erro acreditar que o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas recusa-se a assumir a responsabilidade de uma existência autêntica. Pelo contrário, ele assume corajosamente enormes responsabilidades: por exemplo, a de colaborar na criação do Cosmos, criar seu próprio mundo, ou assegurar a vida das plantas e dos animais etc. (…) Trata-se de uma responsabilidade no plano cósmico, diferente das responsabilidades de ordem moral, social ou histórica, as únicas conhecidas pelas civilizações modernas. Na perspectiva da existência profana, o homem só reconhece responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. Para ele, o Universo não constitui um Cosmos, ou seja, uma unidade viva e articulada; é simplesmente a soma das reservas materiais e de energias físicas do planeta.

“(…) aqui, é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma característica essencial do homem das sociedades primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do Ser. No plano existencial, esta experiência traduz-se pela certeza de poder recomeçar periodicamente a vida com o máximo de ‘sorte’. É, com efeito, não somente uma visão otimista da existência, mas também uma adesão total ao Ser. Por todos os seus comportamentos, o homem religioso proclama que só acredita no Ser e que sua participação no Ser lhe é afiançada pela revelação primordial da qual ele é o guardião.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 81 ss.

Templumtempus: a correspondência circular espaço-temporal

Tipi sagrada dos Arapaho, Wyoming (EUA)

Tipi sagrada dos Arapaho, Wyoming (EUA)

“(…) Em várias línguas das populações aborígines da América do Norte, o termo ‘Mundo’ (= Cosmos) é igualmente utilizado no sentido de ‘Ano’. Os yokut dizem ‘o mundo passou’, para exprimir que ‘um ano se passou’. Para os yuki, o ‘Ano’ é designado pelos vocábulos ‘Terra’ ou ‘Mundo’. Como os yokut, eles dizem ‘a terra passou’, no sentido de que se passou um ano. O vocabulário revela a correspondência religiosa entre o Mundo e o Tempo cósmico. O Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e se extingue no último dia do Ano, para renascer no dia do Ano Novo. (…) Esse renascimento é um nascimento, (…) o Cosmos renasce todos os anos porque, a cada Ano Novo, o Tempo começa ab initio.

“A correspondência cósmico-temporal é de natureza religiosa: o Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o ‘Ano’), pois tanto um como o outro são realidades sagradas, criações divinas. Entre certas populações norte americanas, essa correspondência cósmico-temporal é revelada pela própria estrutura dos edifícios sagrados. Visto que o Templo representa a imagem do Mundo, comporta igualmente um simbolismo temporal. É o que encontramos, por exemplo, entre os algonquinos e os sioux: sua cabana sagrada representa o Universo e simboliza também o ano. Porque o ano é concebido como um trajeto através das quatro direções cardeais, significadas pelas quatro janelas e pelas quatro portas da cabana sagrada. Os dacotas dizem: ‘O Ano é um círculo em volta do Mundo’, quer dizer, em volta da sua cabana sagrada, que é uma imago mundi. (…)

“[O filólogo alemão] Hermann Usener [(1834-1905) foi] o primeiro a explicar o parentesco  etimológico entre templumtempus, ao interpretar os dois termos pela noção de  interseção  (…). Investigações ulteriores afirmaram ainda mais esta descoberta:  ‘Templum exprime o espacial,  tempus o temporal. O conjunto  desses dois elementos constitui uma imagem circular espaço-temporal’.

“(…) Para o homem religioso das culturas arcaicas, o Mundo renova-se anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador. Este simbolismo está claramente indicado na estrutura arquitetônica dos santuários. Visto que o Templo é, ao mesmo tempo, o lugar santo por excelência e a imagem do Mundo, ele santifica o Cosmos como um todo e também a vida cósmica. Ora, a vida cósmica era imaginada sob a forma de uma trajetória circular e identificava-se com o Ano. O Ano era um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder ‘renascer’ sob a forma de um Ano Novo. A cada Ano Novo, um Tempo ‘ novo’, ‘puro’e ‘santo’ — porque ainda não usado — vinha à existência.

“Mas o Tempo renascia, recomeçava, porque, a cada Novo Ano, o Mundo era criado novamente. Verificamos (…) a importância do mito cosmogônico como modelo exemplar para toda espécie de criação e construção. Acrescentemos agora que a cosmogonia comporta igualmente a criação do Tempo. Mais ainda: assim como a cosmogonia é o arquétipo de toda ‘criação’, o Tempo cósmico que a cosmogonia faz brotar é o modelo exemplar de todos os outros tempos, quer dizer, dos Tempos específicos às diversas categorias de existentes. Expliquemo-nos: para o homem religioso das culturas arcaicas, toda criação, toda existência começa no Tempo: antes que uma coisa exista, seu tempo próprio não pode existir. Antes que o Cosmos viesse à existência, não havia tempo cósmico. Antes de uma determinada espécie vegetal ter sido criada, o tempo que a faz crescer agora, dar fruto e perecer, não existia. É por esta razão que toda criação é imaginada como tendo ocorrido no começo do Tempo, in principio. O Tempo brota com a primeira aparição de uma nova categoria de existentes. Eis por que o mito desempenha um papel tão importante: (…) é o mito que revela como uma realidade veio à existência.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 66 ss.

A vida no limiar e no centro: o povo Haida

O povo Haida tradicionalmente vivia no litoral das atuais Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá. A leste ficava o continente norte-americano; a oeste, 11 mil quilômetros de oceano aberto. Eram, e são, uma cultura de fronteira — de uma zona no limiar entre terra e mar, entre o mundo dos animais e o dos deuses. Viviam em “um mundo mais antigo, em que os deuses são tão inumeráveis, numinosos, fatais e locais quanto as orcas, as pedras e as árvores”. (Robert Bringhurst, “A Story as Sharp as a Knife”, p. 18)

No idioma Haida clássico, eles se consideravam habitantes das Xhaaydla Gwaayaay — as “Ilhas na Fronteira entre os Mundos“. Ao mesmo tempo, porém, viviam — como toda cultura — no centro do mundo.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá, ambiente do povo Haida.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, costa oeste do Canadá, lar do povo Haida, no limiar entre mar e terra. | Clique para ampliar

A história do povo Haida remonta a milhares de anos antes da chegada dos europeus. Os Haida testemunharam mudanças profundas em sua terra e conseguiram sobreviver e prosperar graças aos recursos fornecidos pelo mar e pela floresta, tornando-se uma das civilizações culturalmente mais avançadas da América do Norte.

A cultura Haida teve a peculiaridade de combinar um estilo de vida baseado na caça e na coleta e o estabelecimento de cidades, em geral associada a uma cultura agrícola. Coletavam alimento duas vezes ao dia, na vazante; comiam frutas e outros vegetais colhidos nas florestas, e caçavam a grande variedade de animais da região.

“Mesmo sem agricultura, os Haida viviam como prósperos fazendeiros em cidades de porte considerável. Sua rica tradição artística e literatura oral tem suas raízes na presença constante do mar. Só raramente o maná cai dos céus — mas emerge todos os dias das ondas. Assim, o domínio divino primordial, na cosmologia Haida, não é celestial, é submarino.” (Idem, p. 65)

O ambiente em que os Haida viviam, morriam e contavam suas histórias era complexo. Haida Gwaii (como chamavam sua terra natal) era uma terra de água; água que bordejava suas aldeias praianas, que caía constantemente dos céus, e corria pelas florestas, nutrindo e dando vida a todas as suas criaturas, fossem estas humanas, animais ou míticas. A terra dos Haida é verde, densa e úmida, e seus mitos e arte refletem claramente a paisagem que habitavam.

As aldeias Haida situavam-se sobretudo nas praias, e é nesse espaço intermediário que a vida humana existia (assim como a cultura Haida como um todo existia na zona intermediária entre continente e oceano). As histórias começavam quando o Homem dava o pequeno passo necessário para transpor o limiar de um mundo para outro, que o levava do espaço intersticial do mundo humano para o mundo da floresta, do mar ou do céu, pertencente aos animais ou deuses. “Os seres humanos só se encontram em casa na xhaaydla, a fronteira ou região entremarés, na conjunção dos três. Bastavam algumas remadas ou um poucos passos para dentro do mato para deixar o mundo humano para trás” (idem, p. 155).

De todos os animais e seres espirituais do mundo dos Haida, nenhum era mais significativo para o senso de si desse povo que o Corvo — deus, trickster, criador do mundo, que convida os primeiros humanos a deixar seu esconderijo para desfrutar do novo mundo:

O grande dilúvio, que cobriu a Terra por tanto tempo, tinha por fim recuado e a areia de Haida Gwaii estava seca. O Corvo andava pela areia, de olhos e ouvidos atentos a qualquer visão ou som incomuns que quebrassem a monotonia. Um brilho branco chamou sua atenção e ali, bem aos seus pés, semienterrada na areia, estava uma concha gigante. Olhando mais de perto, ele notou que ela estava repleta de minúsculas criaturas, encolhidas de terror sob sua enorme sombra. Inclinou sua cabeçorra e, usando de toda a sua malandragem, tratou de alternadamente persuadi-los, seduzi-los e coagi-los a sair e brincar naquele mundo novinho em folha. Esses pequeninos eram os Haida originais, os primeiros seres humanos. (Bill Reid, “The Raven and the First Men”)

A sociedade Haida se dividia em duas partes, Águia e Corvo. A Águia representava a sociedade humana central, regular, o caminho da esquerda. Era ela que regia a coleta de alimentos, a transmissão dos julgamentos, os casamentos. O Corvo presidia o cambiante reino do mito, aquele passo que era preciso dar para deixar o mundo humano para trás e adentrar o domínio da arte e dos contos.

Sobre o Corvo, Claude Lévi-Strauss comenta:

O fato de os ameríndios porem um personagem tão insidioso, insolente, libidinoso, e, muitas vezes, grotesco, com um pendor para a escatologia, no ápice de seu panteão, talvez surpreenda alguns. Mas o pensamento indígena situa o Corvo no limiar entre duas eras (…). Já não se pode fazer qualquer coisa. O trickster descobre isso — muitas vezes ao custo da própria integridade. (…) O Corvo é ao mesmo tempo o maior rebelde e o legislador supremo. (Bringhurst e Reid, “The Raven Steals the Light”, do prefácio)

O trickster é capaz de cruzar fronteiras com grande facilidade, e o Corvo consegue navegar com facilidade o espaço liminar dos Haida, abrindo caminho para que os Haida façam o mesmo, como exige o contexto onde vivem. O Corvo “sabe como escapar por entre os poros, e como bloqueá-los; confunde as polaridades voltando sobre os próprios passos e invertendo seu próprio rumo; cobre seus rastros e torce seus significados; e é politrópico, mudando de pele ou de forma conforme cada situação exige.”(Lewis Hyde, “Trickster Makes this World”, p. 62)

Baseado em parte em Allison Steiger, aqui

Jano, deus das passagens e transições

Jano (Ianus), deus romano das portas, princípios e transições

Jano (Ianus), deus romano das portas, passagens, princípios, fechamentos e transições

Os Antigos Romanos nos falam de Jano, por eles chamado Ianus, deus dos começos e das transições, assim como também das portas e dos portões, das passagens, dos fechamentos e do tempo. Deus supremo do panteão romano, para alguns estudiosos, olha ao mesmo tempo para o passado e para o futuro — e por isso é representado com duas faces, sendo às vezes uma velha e outra jovem; uma com um cajado na mão, a outra com uma chave. Os romanos batizaram em sua homenagem o mês que abre o ano: Ianuarius.

Como deus do movimento, Jano cuida das passagens, faz com que as ações tenham início e preside todos os começos. Como o movimento e as mudanças são bivalentes, possui uma dupla natureza, simbolizada em sua imagem de duas cabeças. Tem sob sua tutela o entrar e sair pela porta das casas, ianua, que leva seu nome (e não o contrário).

A ligação entre as noções de princípio (principium), movimento, transição (eundo), e, portanto, tempo, é claramente expressa por Cícero:

“Uma vez que, além disso, em todas as coisas no princípio e o fim são da maior importância, atribui-se o primeiro lugar no sacrifício a Ianus, cujo nome é derivado de ire, ir, de que deriva o nome das passagens, janus, e das portas de entrada das casas particulares, januæ“. (De Natura Deorum II 27)

Em geral, o deus está na origem do tempo como o guardião das portas dos Céus: é graças a Jano que o próprio Júpiter pode ir e vir (Ovídio [Fasti I 125-126]: “Presido sobre as portas do céu, junto com as suaves Horas: o próprio Júpiter vai e volta graças a mim”). Ele rege os princípios (concretos e abstratos) do mundo — Varro, em Carmen Saliare, chama-o de “criador”, como o iniciador do próprio mundo. Ovídio [Fasti I 117-20] afirma que ele é o governante e motor do universo —, a religião e os próprios deuses, além de deter o acesso ao Céu e aos demais deuses. Por isso os homens devem invocá-lo em primeiro lugar, independentemente do deus ao qual pretendem orar ou aplacar. Jano é o iniciador da vida humana, de novas eras históricas e empresas financeiras.

Jano com frequência simboliza as mudanças e transições, como a passagem do futuro para o passado, de uma condição para outra, de uma visão para outra, e da juventude para a vida adulta. Representa o tempo por ser capaz de ver o passado com uma face e o futuro com a outra. Segundo Ovídio (Fasti I 133-40), sua dupla cabeça significa que ele, como caelestis ianitor aulae, porteiro da mansão celestial, pode vigiar ao mesmo tempo os portões leste e oeste do céu. Daí Jano ser cultuado no início das épocas de colheita e plantio, bem como nos casamentos, óbitos e outros começos. Representa o meio-termo entre barbárie e civilização, espaço rural e urbano, juventude e idade adulta. Devido à sua jurisdição sobre os princípios, Jano guarda também uma associação intrínseca com presságios e auspícios.

Se Jano rege também o início e o fim de conflitos, preside, portanto, a guerra e a paz. As portas de seu templo permanecem abertas em tempo de guerra e são fechadas para assinalar a paz. Como deus das transições, relacionado ao nascimento e às viagens e intercâmbios, e por sua associação com Portuno, deus das chaves e dos portos, é ligado também a viagens, ao comércio e ao transporte.

Jano não tinha um sacerdote especializado (sacerdos) atribuído para seu culto, mas o Rei dos Ritos Sagrados (rex sacrorum) se encarregava de suas cerimônias. Sua presença era ubíqua nas cerimônias religiosas ao longo do ano, sendo ritualmente invocado no início de cada uma, independentemente da divindade principal homenageada em cada ocasião.

Fonte

 

A porta: abertura e comunicação entre dois mundos

 

Porta da catedral de Notre-Dame, em Paris, uma das primeiras catedrais góticas francesas. Começou a ser construída em 1163.

Porta da catedral de Notre-Dame, em Paris, uma das primeiras catedrais góticas francesas. Começou a ser construída em 1163.

“A fim de pôr em evidência a não-homogeneidade do espaço, tal qual ela é vivida pelo homem religioso, (…) escolhamos um exemplo ao alcance de todos: uma igreja, numa cidade moderna. Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua onde ela se encontra. A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado.

“Uma função ritual análoga é transferida para o limiar das habitações humanas, e é por essa razão que este último goza de tanta importância. Numerosos ritos acompanham a passagem do limiar doméstico: reverências ou prosternações, toques devotados com a mão etc. O limiar tem os seus ‘guardiões’: deuses e espíritos que proíbem a entrada tanto aos adversários humanos como às potências demoníacas e pestilenciais. É no limiar que se oferecem sacrifícios às divindades guardiãs. É também no limiar que certas culturas paleo-orientais (Babilônia, Egito, Israel) situavam o julgamento. O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem.

“Depois de tudo o que acabamos de dizer, é fácil compreender por que a igreja participa de um espaço totalmente diferente daquele das aglomerações humanas que a rodeiam. No interior do recinto sagrado, o mundo profano é transcendido. Nos níveis mais arcaicos de cultura, essa possibilidade de transcendência exprime se pelas diferentes imagens de uma abertura: lá, no recinto sagrado, torna-se possível a comunicação com os deuses; conseqüentemente, deve existir uma ‘porta’ para o alto, por onde os deuses podem descer à Terra e o homem pode subir simbolicamente ao Céu. Assim acontece em numerosas religiões: o templo constitui, por assim dizer, uma ‘abertura’ para o alto e assegura a comunicação com o mundo dos deuses.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 28 ss.

Assumir a criação do (próprio) mundo

No Ketzelburg, castelo medieval erguido na segunda metade do séc. XII na Baviera e escavado entre 2004 e 2005, foi encontrado o esqueleto de um cão, segundo o hábito (já encontrado nos romanos) de enterrar, nas fundações dos edifícios, animais e objetos protetores a fim de afugentar os maus espíritos - aqui, o "cão fantasma" evitaria que o castelo fosse infestado por demônios. []

No Ketzelburg, castelo medieval erguido na segunda metade do séc. XII na Baviera e escavado entre 2004 e 2005, foi encontrado o esqueleto de um cão, segundo o hábito (já encontrado entre os romanos) de enterrar, nas fundações dos edifícios, animais e objetos protetores a fim de afugentar os maus espíritos; aqui, o “cão fantasma” evitaria que o castelo fosse infestado por demônios. A chave enterrada junto ao cão confirma sua função de guardião do limiar entre cosmos e caos. [Fonte]

“Instalar-se num território, construir uma morada pede (…) uma decisão vital, tanto para a comunidade como para o indivíduo. Trata-se de assumir a criação do ‘mundo’ que se escolheu habitar. É preciso, pois, imitar a obra dos deuses, a cosmogonia. Mas isso nem sempre é fácil de fazer, pois existem também cosmogonias trágicas, sangrentas: como imitador dos gestos divinos, o homem deve reiterá-las. Se os deuses tiveram de espancar e esquartejar um Monstro marinho ou um Ser primordial para poderem criar a partir dele o mundo, o homem, por sua vez, deve imitar essa ação quando constrói seu mundo próprio, a cidade ou a casa. Daí a necessidade de sacrifícios sangrentos ou simbólicos por ocasião das construções, as inúmeras formas de Bauopfer [v. abaixo] (…).

“Seja qual for a estrutura de uma sociedade tradicional – seja uma sociedade de caçadores, pastores, agricultores, ou uma sociedade que já se encontre no estágio da civilização urbana –,a habitação é sempre santificada, pois constitui uma imago mundi, e o mundo é uma criação divina. Mas existem várias maneiras de equiparar a morada ao Cosmos, justamente porque existem vários tipos de cosmogonia. (…) basta-nos distinguir dois meios de transformar ritualmente a morada (tanto o território como a casa) em Cosmos, quer dizer, de lhe conferir o valor de imago mundi: (a) assimilando-a ao Cosmos pela projeção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, quando se trate de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis mundi, quando se trate da habitação familiar; (b) repetindo, mediante um ritual de construção, o ato exemplar dos deuses, graças ao qual o Mundo tomou nascimento do corpo de um Dragão marinho ou de um Gigante primordial. (…)

“Com efeito, a morada das populações primitivas árticas, norte-americanas e norte asiáticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis mundi, quer dizer, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo, que, como vimos, ligam a Terra ao Céu. Em outras palavras, na própria estrutura da habitação revela-se o simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e designados por este nome. Esse poste central tem um papel ritual importante: é na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do Ser supremo celestial. O mesmo simbolismo conservou-se entre os pastores criadores de gado da Ásia central, mas, como a habitação de teto cônico com pilar central foi substituída aqui pela iurta, a função mítico-ritual do pilar é atribuída à abertura superior de evacuação da fumaça. Tal como o poste (= Axis mundi), a árvore desprovida de ramos cujo cimo sai pela abertura superior da iurta (e que simboliza a Árvore cósmica) é concebida como uma escada que conduz ao Céu: os xamãs trepam por ela na sua viagem celeste. E é pela abertura superior que saem os xamãs. Encontra-se ainda o Pilar sagrado, erguido no meio da habitação, na África, entre os povos hamitas e hamitoides. Concluindo, toda morada situa-se perto do Axis mundi, pois o homem religioso só pode viver implantado na realidade absoluta.

“Uma concepção similar encontra-se também numa cultura altamente evoluída como a da Índia, mas neste caso apresenta se igualmente a outra maneira de equiparar a casa ao Cosmos, acerca da qual já dissemos algumas palavras.

“Com efeito, antes de os pedreiros colocarem a primeira pedra, o astrólogo indica-lhes o ponto dos alicerces que se situa acima da Serpente que sustenta o mundo. Um mestre de obras talha uma estaca e a enterra no solo, exatamente no ponto designado, a fim de fixar bem a cabeça da serpente. Uma pedra de base é colocada em seguida por cima da estaca. A pedra angular encontra-se assim exatamente no ‘Centro do Mundo’. Mas, por outro lado, o ato de fundação repete o ato cosmogônico: enterrar a estaca na cabeça da serpente e ‘fixá- la’ é incitar o gesto primordial de Soma ou de Indra, quando este último, conforme diz o Rig Veda, ‘feriu a serpente no seu antro’ (IV, 17, 9) e ‘cortou-lhe a cabeça’ com seus raios (1, 52, 10). Como já dissemos, a Serpente simboliza o Caos, o amorfo, o não-manifestado. Decapitá-la equivale a um ato de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal. Lembremo- nos de que foi do corpo de um monstro marinho primordial, Tiamat, que o deus Marduk deu forma ao Universo. Essa vitória era simbolicamente reiterada todos os anos, visto que todos os anos se renovava o Cosmos. Mas o ato exemplar da vitória divina era igualmente repetido por ocasião de qualquer construção; pois toda nova construção reproduzia a Criação do Mundo.

“(…) Com efeito, a partir de um determinado tipo de cultura, o mito cosmogônico explica a Criação pela morte de um Gigante (…): seus órgãos dão nascimento às diferentes regiões cósmicas. Segundo outros grupos de mitos, não é somente o Cosmos que nasce na seqüência da imolação de um Ser primordial e da sua própria substância, mas também as plantas alimentares, as raças humanas ou as diferentes classes sociais. É desse tipo de mitos cosmogônicos que dependem os Bauopfer. Sabe se que, para durar, uma ‘construção’ (casa, templo, obra técnica etc.) deve ser animada, quer dizer, receber uma vida e uma alma. O ‘traslado ‘da alma só é possível mediante um sacrifício sangrento. A história das religiões, a etnologia, o folclore apresentam inúmeras formas de Bauopfer, isto é, sacrifícios sangrentos ou simbólicos em proveito de uma construção. (…).

“Tal como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmológicos. É por essa razão que se instalar em qualquer parte, construir uma aldeia ou simplesmente uma casa representa uma decisão grave, pois isso compromete a própria existência do homem: trata-se, em suma, de criar seu próprio ‘mundo’ e assumir a responsabilidade de mantê-lo e renová-lo . (…) Toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova vida. E todo começo repete o começo primordial, quando o Universo viu pela primeira vez a luz do dia. (…)

“Dado que a morada constitui uma imago mundi, ela se situa simbolicamente no ‘Centro do Mundo’. A multiplicidade, até mesmo a infinidade dos Centros do Mundo não traz quaisquer dificuldades para o pensamento religioso. Porque não se trata do espaço geométrico, mas de um espaço existencial e sagrado, que apresenta uma estrutura totalmente diferente e que é suscetível de uma infinidade de roturas e, portanto, de comunicações com o transcendente. Vimos o significado cosmológico e o papel ritual da abertura superior nas diferentes formas de habitação. Em outras culturas, esses significados cosmológicos e funções rituais são atribuídos à chaminé (= orifício da fumaça) (…). Lembremos que os santuários mais antigos eram a céu aberto ou apresentavam uma abertura no teto: era o ‘olho da cúpula’, simbolizando a rotura dos níveis, a comunicação com o transcendente.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 49 ss.

“Nosso mundo” está sempre no Centro

O Oráculo de Delfos era reverenciado no mundo grego como o omphalos, o centro do mundo.

O Oráculo de Delfos era reverenciado no mundo grego como o omphalos, o umbigo (centro) do mundo.

“Um Universo origina-se a partir do seu Centro, estende-se a partir de um ponto central que é como o seu ‘umbigo’. É assim que, segundo o Rig Veda (X, 149), nasce e se desenvolve o Universo: a partir de um núcleo, de um ponto central. A tradição judaica é ainda mais explícita: ‘O Santíssimo criou o mundo como um embrião. Tal como o embrião cresce a partir do umbigo, do mesmo modo Deus começou a criar o mundo pelo umbigo e a partir daí difundiu se em todas as direções’. E visto que o ‘umbigo da Terra’, o Centro do Mundo é a Terra Santa, Yoma afirma: ‘O mundo foi criado a começar por Sion’. Rabbi bin Gorion disse do rochedo de Jerusalém que ‘ele se chama a Pedra angular da Terra, quer dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir dali que toda a Terra se desenvolveu’. Por outro lado, uma vez que a criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí resulta que o primeiro homem foi fabricado no ‘umbigo da Terra’ (tradição mesopotâmica), no Centro do Mundo (tradição iraniana), no Paraíso situado no ‘umbigo da Terra’ ou em Jerusalém (tradições judaico-cristãs). E nem podia ser de outra forma, aliás, pois o Centro é justamente o lugar onde se efetua uma rotura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real por excelência. Uma criação implica superabundância de realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção do sagrado no mundo.

“Segue se daí que toda construção ou fabricação tem como modelo exemplar a cosmogonia. A Criação do Mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano, seja qual for seu plano de referência. Já vimos que a instalação num território reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o valor cosmogônico do Centro, compreendemos melhor por que todo estabelecimento humano repete a Criação do Mundo a partir de um ponto central (o ‘umbigo’). Da mesma forma que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali, tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a construção de uma nova aldeia, procura-se um cruzamento natural, onde se cortam perpendicularmente dois caminhos. O quadrado construído a começar de um ponto central é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro setores – que implica aliás uma partilha similar da comunidade – corresponde à divisão do Universo em quatro horizontes. No meio da aldeia deixa se muitas vezes um espaço vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telhado representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se, na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado por certos animais (serpente, crocodilo etc.) ou pelos ideogramas das trevash.

“O simbolismo cósmico da aldeia é retomado na estrutura do santuário ou da casa cultual. Em Waropen, na Nova Guiné, a ‘casa dos homens’ encontra-se no meio da aldeia: o telhado representa a abóbada celeste, as quatro paredes correspondem às quatro direções do espaço. Em Ceram, a pedra sagrada da aldeia simboliza o Céu, e as quatro colunas de pedra que a sustentam encarnam os quatro pilares que sustentam o Céu. Encontram-se concepções análogas entre as tribos algonquinas e sioux. A cabana sagrada, onde se realizam as iniciações, representa o Universo. O teto da cabana simboliza a cúpula celeste, o soalho representa a Terra, as quatro paredes as quatro direções do espaço cósmico. A construção ritual do espaço é sublinhada por um triplo simbolismo: as quatro portas, as quatro janelas e as quatro cores significam os quatr o pontos cardeais. A construção da cabana sagrada repete assim a cosmogonia, pois esta casinha representa o Mundo.

“Não é surpreendente encontrar uma concepção similar na Itália antiga e entre os antigos germanos. Trata – se, em suma, de uma idéia arcaica e muito difundida: a partir de um Centro projetam-se os quatro horizontes nas quatro direções cardeais. O mundus romano era uma fossa circular, dividida em quatro; era ao mesmo tempo a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Sugeriu se com razão que a Roma quadrata deve ser entendida não como tendo a forma de um quadrado, mas como sendo dividida em quatro. O mundus era evidentemente equiparado ao omphalos, ao umbigo da Terra: a Cidade (Urbs) situava-se no meio do orbis terrarum. Demonstra-se, assim, que idéias similares explicam a estrutura das aldeias e das cidades germânicas. Em contextos culturais extremamente variados, reencontramos sempre o mesmo esquema cosmológico e a mesma encenação ritual: a instalação num território equivale à fundação de um mundo.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 32 ss., 44 ss.

Iahweh, matador de dragões

Ilustração do post onde encontrei originalmente essas referências, aqui

Ilustração do post onde encontrei originalmente essas referências, aqui

Um interessante artigo, publicado em quatro partes no blog Religion Think (partes 1, 2, 3 e 4) e unificado aqui para facilitar a leitura (estou trabalhando na tradução), compara os mitos de Indra (hindu), Marduk (mesopotâmico), Iahweh (israelita) e Baal (cananeu) e o papel desses personagens como herois civilizadores, matadores de dragões como arquidemônios do caos. Publicarei aqui uma síntese em breve, mas por ora vale assinalar algumas passagens em que o Deus de Israel figura nesse papel, revelando ecos do mito cosmogônico cananeu e do mito cosmogônico israelita primitivo.

Jó descreve o poder de Deus, que com seu sopro (ruah) venceu o Oceano (Jó 26, 12) e com sua mão esmagou Rahab, a nahash (serpente) sinuosa e fugidia (Jó 26, 13):

Traçou um círculo à superfície das águas, onde a luz confina com as trevas. As colunas do céu estremecem e assustam-se com a sua ameaça. Com seu poder levanta o mar, com sua sabedoria destruiu Raab. Seu sopro varreu os céus, e sua mão feriu a serpente fugitiva. (Jó 26, 10-13)

A mesma referência é encontrada no Salmo 88:

Quem se compara a vós, Senhor, Deus dos exércitos? Sois forte, Senhor, e cheio de fidelidade.
Dominais o orgulho do mar, amainais suas ondas revoltas.
Calcastes Raab e o transportastes; com poderoso braço dispersastes vossos inimigos.
Vossos são os céus e também a terra, vós que criastes o globo e tudo o que ele contém.
O norte e o sul vós os fizestes; Tabor e Hermon em vosso nome exultam. (Sl 88, 9-13)

E, ainda, em Isaías:

Desperta, braço do Senhor, desperta, recobra teu vigor! Levanta-te como nos dias do passado, como nos tempos de outrora. Não foste tu que esmagaste Raab e fendeste de alto a baixo o Dragão? Não foste tu que secaste o mar e estancaste as águas do grande abismo? Tu que abriste no fundo do mar um caminho, para por aí passarem os resgatados? (Is 51, 9-10)

Fontes: aqui e aqui

“Estamos todos no inferno”: cosmos vs. caos nas tensões sociais brasileiras hoje

Morro x Asfalto, Centro x Periferia, Caos x Cosmos

Morro x Asfalto, Centro x Periferia, Caos x Cosmos

Circula na internet uma suposta entrevista dada por Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC, ao O Globo (leia aqui). Na verdade, trata-se de uma obra de ficção, publicada na coluna de Arnaldo Jabor na versão impressa do jornal em 23 de maio de 2006 – e o próprio Jabor confirma a autoria do texto fictício na Rádio CBN, no dia 07 de julho de 2006. O equívoco foi bem esclarecido pelo pessoal do e-farsas, aqui.

No entanto, o texto, intitulado “Estamos todos no inferno”, enganou e segue enganando muitos leitores, que acreditam piamente na sua veracidade. E o que nos interessa aqui é salientar justamente como, justamente por ser inverídico, ele pode apontar para uma verdade mais profunda: a realidade muito concreta daquilo que Olívio Tavares de Araújo chama, em artigo a respeito no Observatório da Imprensa (aqui), de “medo de classe”, e um comentário no Jornal da Ordem (aqui), de “pavor do cidadão médio” – isto é, o pânico inspirado pela ameaça de invasão (e destruição) do “nosso mundo” (cosmos) pelas forças do “outro mundo” (caos).

Como assinala Eliade (v. aqui):

“Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mesmas imagens quando se trata de formular os perigos que ameaçam certo tipo de civilização: fala-se do ‘caos’, de ‘desordem’, das ‘trevas’ onde ‘nosso mundo’ se afundará. Todas essas expressões significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica, e a re-imersão num estado fluido, amorfo, enfim, caótico. Isto prova, ao que parece, que as imagens exemplares sobrevivem ainda na linguagem e nos estribilhos do homem não religioso. Algo da concepção religiosa do Mundo prolonga-se ainda no comportamento do homem profano, embora ele nem sempre tenha consciência dessa herança imemorial.”

É interessante observar a frequência com que a imprensa e as redes sociais dão testemunho da atualidade dessa contraposição entre “nós” e “eles”; entre o “nosso mundo” e a ameaça representada pelo “Outro”, o “demônio” que é portador da destruição e da regressão da “civilização” à “barbárie”, ao caos.

Veja-se, por exemplo, o recente fenômeno dos “rolezinhos“, as incursões coletivas de jovens das periferias nos shoppings, tradicionais redutos das classes média e alta brasileiras – e note-se, em expressões como “incursão”, “marginais”, “periferias”, “redutos”, “apartheid cultural”, a carga simbólica reveladora da oposição cosmos (o campo do “asfalto”, “centro”, “civilização”, “nosso mundo”, “nós”) x caos (o campo do “morro”, “periferia”, “barbárie”, “inferno”, “outro mundo”, “eles”).

A cientista social Rosana Pinheiro-Machado comenta, em artigo na Carta Capital (aqui):

“Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que discriminação fosse tão grande que eles pudessem assustar. Muito pelo contrário: eles faziam um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno a transitar pelo shopping. Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente.”

Comentando o caso, Leonardo Boff (aqui) denuncia: “os marginalizados do mundo inteiro estão saindo da margem e indo rumo ao centro para suscitar a má consciência dos ‘consumidores felizes’ e lhes dizer: esta ordem é ordem na desordem. Ela os faz frustrados e infelizes, tomados de medo, medo dos próprios semelhantes que somos nós”. No entanto, o medo que quem está no centro tem de quem está nas periferias não é o medo do seu “semelhante” – muito pelo contrário, é o medo ao “Outro”, o arquidemônio, o mensageiro do Caos. O desejo do menino de “ser visto como gente” aponta justamente isto: no embate entre as forças da ordem e a desordem da dissolução do mundo no caos, simbolicamente ele não é “gente”, e sabe disso. Seu estatuto simbólico é outro: o Outro.