No Ketzelburg, castelo medieval erguido na segunda metade do séc. XII na Baviera e escavado entre 2004 e 2005, foi encontrado o esqueleto de um cão, segundo o hábito (já encontrado entre os romanos) de enterrar, nas fundações dos edifícios, animais e objetos protetores a fim de afugentar os maus espíritos; aqui, o “cão fantasma” evitaria que o castelo fosse infestado por demônios. A chave enterrada junto ao cão confirma sua função de guardião do limiar entre cosmos e caos. [Fonte]
“Instalar-se num território, construir uma morada pede (…) uma decisão vital, tanto para a comunidade como para o indivíduo. Trata-se de assumir a criação do ‘mundo’ que se escolheu habitar. É preciso, pois, imitar a obra dos deuses, a cosmogonia. Mas isso nem sempre é fácil de fazer, pois existem também cosmogonias trágicas, sangrentas: como imitador dos gestos divinos, o homem deve reiterá-las. Se os deuses tiveram de espancar e esquartejar um Monstro marinho ou um Ser primordial para poderem criar a partir dele o mundo, o homem, por sua vez, deve imitar essa ação quando constrói seu mundo próprio, a cidade ou a casa. Daí a necessidade de sacrifícios sangrentos ou simbólicos por ocasião das construções, as inúmeras formas de
Bauopfer [v. abaixo] (…).
“Seja qual for a estrutura de uma sociedade tradicional – seja uma sociedade de caçadores, pastores, agricultores, ou uma sociedade que já se encontre no estágio da civilização urbana –,a habitação é sempre santificada, pois constitui uma imago mundi, e o mundo é uma criação divina. Mas existem várias maneiras de equiparar a morada ao Cosmos, justamente porque existem vários tipos de cosmogonia. (…) basta-nos distinguir dois meios de transformar ritualmente a morada (tanto o território como a casa) em Cosmos, quer dizer, de lhe conferir o valor de imago mundi: (a) assimilando-a ao Cosmos pela projeção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, quando se trate de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis mundi, quando se trate da habitação familiar; (b) repetindo, mediante um ritual de construção, o ato exemplar dos deuses, graças ao qual o Mundo tomou nascimento do corpo de um Dragão marinho ou de um Gigante primordial. (…)
“Com efeito, a morada das populações primitivas árticas, norte-americanas e norte asiáticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis mundi, quer dizer, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo, que, como vimos, ligam a Terra ao Céu. Em outras palavras, na própria estrutura da habitação revela-se o simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e designados por este nome. Esse poste central tem um papel ritual importante: é na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do Ser supremo celestial. O mesmo simbolismo conservou-se entre os pastores criadores de gado da Ásia central, mas, como a habitação de teto cônico com pilar central foi substituída aqui pela iurta, a função mítico-ritual do pilar é atribuída à abertura superior de evacuação da fumaça. Tal como o poste (= Axis mundi), a árvore desprovida de ramos cujo cimo sai pela abertura superior da iurta (e que simboliza a Árvore cósmica) é concebida como uma escada que conduz ao Céu: os xamãs trepam por ela na sua viagem celeste. E é pela abertura superior que saem os xamãs. Encontra-se ainda o Pilar sagrado, erguido no meio da habitação, na África, entre os povos hamitas e hamitoides. Concluindo, toda morada situa-se perto do Axis mundi, pois o homem religioso só pode viver implantado na realidade absoluta.
“Uma concepção similar encontra-se também numa cultura altamente evoluída como a da Índia, mas neste caso apresenta se igualmente a outra maneira de equiparar a casa ao Cosmos, acerca da qual já dissemos algumas palavras.
“Com efeito, antes de os pedreiros colocarem a primeira pedra, o astrólogo indica-lhes o ponto dos alicerces que se situa acima da Serpente que sustenta o mundo. Um mestre de obras talha uma estaca e a enterra no solo, exatamente no ponto designado, a fim de fixar bem a cabeça da serpente. Uma pedra de base é colocada em seguida por cima da estaca. A pedra angular encontra-se assim exatamente no ‘Centro do Mundo’. Mas, por outro lado, o ato de fundação repete o ato cosmogônico: enterrar a estaca na cabeça da serpente e ‘fixá- la’ é incitar o gesto primordial de Soma ou de Indra, quando este último, conforme diz o Rig Veda, ‘feriu a serpente no seu antro’ (IV, 17, 9) e ‘cortou-lhe a cabeça’ com seus raios (1, 52, 10). Como já dissemos, a Serpente simboliza o Caos, o amorfo, o não-manifestado. Decapitá-la equivale a um ato de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal. Lembremo- nos de que foi do corpo de um monstro marinho primordial, Tiamat, que o deus Marduk deu forma ao Universo. Essa vitória era simbolicamente reiterada todos os anos, visto que todos os anos se renovava o Cosmos. Mas o ato exemplar da vitória divina era igualmente repetido por ocasião de qualquer construção; pois toda nova construção reproduzia a Criação do Mundo.
“(…) Com efeito, a partir de um determinado tipo de cultura, o mito cosmogônico explica a Criação pela morte de um Gigante (…): seus órgãos dão nascimento às diferentes regiões cósmicas. Segundo outros grupos de mitos, não é somente o Cosmos que nasce na seqüência da imolação de um Ser primordial e da sua própria substância, mas também as plantas alimentares, as raças humanas ou as diferentes classes sociais. É desse tipo de mitos cosmogônicos que dependem os Bauopfer. Sabe se que, para durar, uma ‘construção’ (casa, templo, obra técnica etc.) deve ser animada, quer dizer, receber uma vida e uma alma. O ‘traslado ‘da alma só é possível mediante um sacrifício sangrento. A história das religiões, a etnologia, o folclore apresentam inúmeras formas de Bauopfer, isto é, sacrifícios sangrentos ou simbólicos em proveito de uma construção. (…).
“Tal como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmológicos. É por essa razão que se instalar em qualquer parte, construir uma aldeia ou simplesmente uma casa representa uma decisão grave, pois isso compromete a própria existência do homem: trata-se, em suma, de criar seu próprio ‘mundo’ e assumir a responsabilidade de mantê-lo e renová-lo . (…) Toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova vida. E todo começo repete o começo primordial, quando o Universo viu pela primeira vez a luz do dia. (…)
“Dado que a morada constitui uma imago mundi, ela se situa simbolicamente no ‘Centro do Mundo’. A multiplicidade, até mesmo a infinidade dos Centros do Mundo não traz quaisquer dificuldades para o pensamento religioso. Porque não se trata do espaço geométrico, mas de um espaço existencial e sagrado, que apresenta uma estrutura totalmente diferente e que é suscetível de uma infinidade de roturas e, portanto, de comunicações com o transcendente. Vimos o significado cosmológico e o papel ritual da abertura superior nas diferentes formas de habitação. Em outras culturas, esses significados cosmológicos e funções rituais são atribuídos à chaminé (= orifício da fumaça) (…). Lembremos que os santuários mais antigos eram a céu aberto ou apresentavam uma abertura no teto: era o ‘olho da cúpula’, simbolizando a rotura dos níveis, a comunicação com o transcendente.”
Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 49 ss.