Fieis cristãos ortodoxos participam da Festa das Luzes na Igreja do Santo Sepulcro, na Cidade Velha de Jerusalém | Mais aqui
“[Com relação às características essenciais do Tempo Sagrado,] (…) dois elementos devem reter nossa atenção: (1) pela repetição anual da cosmogonia, o Tempo era regenerado, ou seja, recomeçava como Tempo sagrado, pois coincidia com o illud tempus em que o Mundo viera pela primeira vez à existência; (2) participando ritualmente do ‘fim do Mundo’ e de sua ‘recriação’, o homem tornava-se contemporâneo do illud tempus; portanto, nascia de novo, recomeçava sua existência com a reserva de forças vitais intacta, tal como no momento de seu nascimento.
“Esses fatos são importantes, pois desvendam-nos o segredo do comportamento do homem religioso em relação ao Tempo. Visto que o Tempo sagrado e forte é o Tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente, o homem esforçar-se-á por voltar a unir-se periodicamente a esse Tempo original. Essa reatualização ritual do illud tempus da primeira epifania de uma realidade está na base de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua reatualização.
“O Tempo de origem por excelência é o Tempo da cosmogonia, o instante em que apareceu a mais vasta realidade, o Mundo. É por essa razão que a cosmogonia serve de modelo exemplar a toda ‘criação’, a toda espécie de ‘fazer’. É pela mesma razão que o Tempo cosmogônico serve de modelo a todos os Tempos sagrados: porque, se o Tempo sagrado é aquele em que os deuses se manifestaram e criaram, é evidente que a mais completa manifestação divina e a mais gigantesca criação é a Criação do Mundo.
“Consequentemente, o homem religioso reatualiza a cosmogonia não apenas quando ‘cria’ qualquer coisa (seu ‘mundo pessoal’ – o território habitado – ou uma cidade, uma casa etc.), mas também quando quer assegurar um reinado feliz a um novo soberano, ou quando necessita salvar as colheitas comprometidas, ou quando se trata de uma guerra, de uma expedição marítima etc. Acima de tudo, porém, a recitação ritual do mito cosmogônico desempenha um papel importante nas curas, quando se busca a regeneração do ser humano. (…)
“Mas a ‘primeira manifestação’ de uma realidade equivale à sua ‘criação’ pelos Seres divinos ou semi-divinos: reencontrar o Tempo de origem implica, portanto, a repetição ritual do ato criador dos deuses. A reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos in illo tempore constitui o calendário sagrado, o conjunto das festas. Uma festa desenrola-se sempre no Tempo original. É justamente a reintegração desse Tempo original e sagrado que diferencia o comportamento humano durante a festa daquele de antes ou depois. Em muitos casos, realizam-se durante a festa os mesmos atos dos intervalos não-festivos, mas o homem religioso crê que vive então num outro tempo, que conseguiu reencontrar o illud tempus mítico. (…)
“Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas. Ao nível das civilizações primitivas, tudo o que o homem faz tem um modelo trans-humano; portanto, mesmo fora do tempo festivo, seus gestos imitam os modelos exemplares fixados pelos deuses e pelos Antepassados míticos. Mas essa imitação corre o risco de tornar-se cada vez menos correta. O modelo corre o risco de ser desfigurado ou até esquecido. São as reatualizações periódicas dos gestos divinos — numa palavra, as festas religiosas — que voltam a ensinar aos homens a sacralidade dos modelos. (…)
“Ora, a respeito do tempo sagrado pode se dizer que é sempre o mesmo, que é uma ‘sucessão de eternidades’ (Hubert e Mauss). Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, ‘saem’ de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem-se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que ‘não decorre’ – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável.
“O homem religioso sente necessidade de mergulhar por vezes nesse Tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a duração profana em que se desenrola toda a existência humana. É o eterno presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos. Para dar um só exemplo: é a hierogamia divina, que teve lugar in illo tempore, que tornou possível a união sexual humana. A união entre o deus e a deusa passa-se num instante atemporal, num eterno presente: as uniões sexuais entre os humanos – quando não rituais – desenrolam-se na duração, no tempo profano. O Tempo sagrado, mítico, funda igualmente o Tempo existencial, histórico, pois é o seu modelo exemplar. Em suma, graças aos seres divinos ou semidivinos é que tudo veio à existência. A ‘origem’ das realidades e da própria Vida é religiosa. (…)
“Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta-se a santidade da existência humana como criação divina. No resto do tempo, há sempre o risco de esquecer o que é fundamental: que a existência não é ‘dada’ por aquilo que os modernos chamam de ‘Natureza’, mas é uma criação dos Outros, os deuses ou os Seres semidivinos. Nas festas, ao contrário, reencontra-se a dimensão sagrada da existência, ao se aprender novamente como os deuses ou os Antepassados míticos criaram o homem e lhe ensinaram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos práticos.
“De certo ponto de vista, essa ‘saída’ periódica do Tempo histórico – e sobretudo as consequências que ela acarreta para a existência global do homem religioso pode parecer uma recusa da história, portanto uma recusa da liberdade criadora. Trata-se, em suma, do eterno retorno in illo tempore, num passado que é ‘mítico’, que nada tem de histórico. Pode se concluir então que a eterna repetição dos gestos exemplares revelados pelos deuses ab origine opõe se a todo o progresso humano e paralisa toda a espontaneidade criadora. Certamente esta conclusão é, em parte, justificada. Em parte somente, porque o homem religioso, mesmo o mais ‘primitivo’, não rejeita, em princípio, o ‘ progresso’: aceita-o, mas confere-lhe uma origem e uma dimensão divinas. Tudo o que, na perspectiva moderna, nos parece ter marcado ‘progressos’ (seja qual for sua natureza: social, cultural, técnica etc.) em relação a uma situação anterior – tudo isto foi assumido pelas diversas sociedades primitivas, no decurso de sua longa história, como outras tantas novas revelações divinas.”
Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 72 ss.