Por Cristiana Serra | Continuação deste post
Estávamos discutindo (aqui) racismo e as violências e discriminações sofridas pelos negros por meio da imposição de uma história única de inferioridade e submissão que lhes é imposta e que os animaliza, reduzindo-os a um corpo muito apto para o trabalho físico e sexualizado e, portanto, tornando-os menos humanos do que o dos brancos. Porém, é imperativo que eu faça uma ressalva: minha capacidade de discorrer a esse respeito tem uma limitação evidente. Sendo branca, meu conhecimento sobre as violências sofridas pelos negros é necessariamente restrito, pelo motivo muito simples de que eu não as sinto na pele. Ou, para usar a expressão da palestina Rafeef Ziadah no poema que apresentei, meu corpo não é massacrado por elas.
Porém, nesta nossa cultura que estabelece um dualismo entre a intelectualização (superior) branca e a corporificação (inferior) negra, brancos e negros ocupam espaços assimétricos e sua autoridade enunciativa é desigual, quer dizer, as vozes dos negros são subalternas às dos brancos, assim como as vozes das mulheres (brancas e negras) são subalternas às dos homens (brancos e negros). Um branco, mesmo que não tenha adquirido nenhum conhecimento sobre identidade negra e racismo, e apesar de não ter uma experiência identitária negra, é sempre mais autorizado do que os negros a discorrer acerca de temas como identidade negra e racismo.
Por isso, o fato de eu ser uma pessoa branca, apresentada a vocês como uma profissional de formação universitária e posta no lugar de “palestrante” pelas autoridades competentes desta universidade, dirigindo-me a vocês com um discurso, verbal e gestual, a partir do qual vocês podem identificar uma certa posição na sociedade por conta das histórias que vocês sabem sobre a nossa sociedade, certamente contribui para que o que eu digo sobre racismo receba mais atenção e aprovação do que recebem diariamente enunciados de conteúdo semelhante ou idêntico vocalizados por um negro ou negra, engajados ou não no enfrentamento do racismo. Mais: o fato de eu ser branca certamente contribui para que o meu enunciado não receba críticas que receberia se fosse enunciado por um negro ou negra, engajados ou não no enfrentamento do racismo.
Há aqui um exercício a fazer no sentido da desconstrução das histórias que contamos sobre “brancos” e “negros”. Quem são @s negr@s? O que é um@ negr@? Quem é negr@? Não existe uma identidade negra homogênea e estável, fundada na natureza biológica, transcultural e transtemporal. Contudo, por mais que possamos questionar as histórias que criam o dualismo fundador dessas duas categorias, qualquer branc@ que participe de debates sobre o racismo e defenda os direitos d@s negr@s terá de adotar uma posição de abertura em relação ao Outro, mantendo-se na disponibilidade de ouvir sua voz. Não tem a obrigação de concordar, pois ninguém tem obrigação de concordar com nada, mas deve, no mínimo, estar dispost@ a ouvir, sempre.
(Esses quatro primeiros parágrafos são uma paráfrase de trechos deste texto de Fabiano Camilo.)
Dito isso, proponho-me a falar de uma história que é minha: a história da “mulher”. Mas quem são as mulheres? O que é uma mulher? Quem é mulher? Será que existe uma identidade feminina homogênea e estável, fundada na natureza biológica, que seja transcultural e transtemporal? Ou qualquer identidade definida será sempre uma história construída e repetida até ganhar força de uma realidade “natural” ou “normal”?