A Ogdóade (Hemenu) de Hermópolis

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra.

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra. | Imagem: Olaf Tausch

Na cidade de Hermópolis (nome dado pelos gregos — que associavam um deus importante na cidade, Tot, ao seu Hermes — à cidade de Khemenu, cujo nome era derivado justamente de sua ogdóade — em egípcio, Hemenu), capital do XV nomo do Alto Egito, dominava um panteão de oito deuses (“ogdóade”) agrupados em quatro pares masculino-feminino. Sua origem variava: por vezes eram apresentados como os primeiros deuses que existiram; em outros casos eram filhos de Atum ou de Xu. Juntos, podem ser entendidos, de todo modo, aspectos do estado fundamental do Ser, aqueles que são o que sempre foram — daí a pouca diferenciação, além do gênero, entre as entidades de cada casal. Com efeito, os nomes das quatro deusas não passam das formas femininas das denominações masculinas, e vice-versa. Ou seja: cada par representa os aspectos masculino e feminino dos seguintes elementos primordiais, a partir dos quais tudo havia se originado:

– Nun e Naunet: as águas primordiais, o oceano infindo primordial, a cheia primeva do Nilo, o caos;
– Heh e Hehet: a eternidade e o espaço infinito (heh significa, em egípcio, “milhão”, e se refere indiscriminadamente ao incomensuravelmente grande tanto em termos de tempo quanto de espaço, dimensões que, no domínio do sagrado, são indistintas);
– Kek e Kauket: as trevas (em egípcio, “o que havia antes da luz”, ou “o portador da luz”);
– Amon e Amaunet: o ar ou o vento em sua característica de invisibilidade, e, nesse sentido do invisível, o oculto.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de rã e as femininas, de cobra.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de sapo e as femininas, de cobra.

As entidades masculinas desse panteão eram representadas como homens com cabeça de sapo (símbolo, para os egípcios, de vida e fertilidade, já que milhões deles nasciam após cada cheia anual do Nilo) e as femininas, como mulheres com cabeça de serpente. A interação entre eles deu origem a uma nova entidade, que, ao se abrir, revelou em seu interior Rá, o disco flamejante do Sol, que, após um intervalo de repouso, criou, com os deuses elementares, todas as demais coisas do Mundo.

Há duas variantes acerca da entidade de onde irrompeu Rá. Na primeira, da interação dos deuses teria emergido das águas primordiais um monte de lodo sobre o qual uma ave celestial — um ganso (ave de Amon) cósmico, ou um íbis (ave associada a Tot), ou ainda um falcão (Hórus) — veio pôr um ovo, do qual nasceu Rá.

Na segunda versão, quando, mais tarde, Atum veio a ser assimilado a Rá como Atum-Rá, adotou-se a crença de que Atum surgira de um botão de lótus azul (uma das variantes da cosmogonia da enéade). O lótus teria emergido das águas em botão, após a interação dos quatro pares de deuses; ou das águas do oceano primordial emergira uma ilha, onde mais tarde seria construída Hermópolis, e nela havia um poço, no qual flutuava um lótus; as divindades masculinas ejacularam sobre ele e o fecundaram. A flor fechou-se durante a noite; quando se abriu, na manhã seguinte, revelou o deus-escaravelho, Khépri, o Sol Nascente, que se transformou em um menino que chorava — Nefertum, de cujas lágrimas se formariam as criaturas da Terra.

A porta: abertura e comunicação entre dois mundos

 

Porta da catedral de Notre-Dame, em Paris, uma das primeiras catedrais góticas francesas. Começou a ser construída em 1163.

Porta da catedral de Notre-Dame, em Paris, uma das primeiras catedrais góticas francesas. Começou a ser construída em 1163.

“A fim de pôr em evidência a não-homogeneidade do espaço, tal qual ela é vivida pelo homem religioso, (…) escolhamos um exemplo ao alcance de todos: uma igreja, numa cidade moderna. Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua onde ela se encontra. A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado.

“Uma função ritual análoga é transferida para o limiar das habitações humanas, e é por essa razão que este último goza de tanta importância. Numerosos ritos acompanham a passagem do limiar doméstico: reverências ou prosternações, toques devotados com a mão etc. O limiar tem os seus ‘guardiões’: deuses e espíritos que proíbem a entrada tanto aos adversários humanos como às potências demoníacas e pestilenciais. É no limiar que se oferecem sacrifícios às divindades guardiãs. É também no limiar que certas culturas paleo-orientais (Babilônia, Egito, Israel) situavam o julgamento. O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem.

“Depois de tudo o que acabamos de dizer, é fácil compreender por que a igreja participa de um espaço totalmente diferente daquele das aglomerações humanas que a rodeiam. No interior do recinto sagrado, o mundo profano é transcendido. Nos níveis mais arcaicos de cultura, essa possibilidade de transcendência exprime se pelas diferentes imagens de uma abertura: lá, no recinto sagrado, torna-se possível a comunicação com os deuses; conseqüentemente, deve existir uma ‘porta’ para o alto, por onde os deuses podem descer à Terra e o homem pode subir simbolicamente ao Céu. Assim acontece em numerosas religiões: o templo constitui, por assim dizer, uma ‘abertura’ para o alto e assegura a comunicação com o mundo dos deuses.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 28 ss.

“Nosso mundo” está sempre no Centro

O Oráculo de Delfos era reverenciado no mundo grego como o omphalos, o centro do mundo.

O Oráculo de Delfos era reverenciado no mundo grego como o omphalos, o umbigo (centro) do mundo.

“Um Universo origina-se a partir do seu Centro, estende-se a partir de um ponto central que é como o seu ‘umbigo’. É assim que, segundo o Rig Veda (X, 149), nasce e se desenvolve o Universo: a partir de um núcleo, de um ponto central. A tradição judaica é ainda mais explícita: ‘O Santíssimo criou o mundo como um embrião. Tal como o embrião cresce a partir do umbigo, do mesmo modo Deus começou a criar o mundo pelo umbigo e a partir daí difundiu se em todas as direções’. E visto que o ‘umbigo da Terra’, o Centro do Mundo é a Terra Santa, Yoma afirma: ‘O mundo foi criado a começar por Sion’. Rabbi bin Gorion disse do rochedo de Jerusalém que ‘ele se chama a Pedra angular da Terra, quer dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir dali que toda a Terra se desenvolveu’. Por outro lado, uma vez que a criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí resulta que o primeiro homem foi fabricado no ‘umbigo da Terra’ (tradição mesopotâmica), no Centro do Mundo (tradição iraniana), no Paraíso situado no ‘umbigo da Terra’ ou em Jerusalém (tradições judaico-cristãs). E nem podia ser de outra forma, aliás, pois o Centro é justamente o lugar onde se efetua uma rotura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real por excelência. Uma criação implica superabundância de realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção do sagrado no mundo.

“Segue se daí que toda construção ou fabricação tem como modelo exemplar a cosmogonia. A Criação do Mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano, seja qual for seu plano de referência. Já vimos que a instalação num território reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o valor cosmogônico do Centro, compreendemos melhor por que todo estabelecimento humano repete a Criação do Mundo a partir de um ponto central (o ‘umbigo’). Da mesma forma que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali, tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a construção de uma nova aldeia, procura-se um cruzamento natural, onde se cortam perpendicularmente dois caminhos. O quadrado construído a começar de um ponto central é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro setores – que implica aliás uma partilha similar da comunidade – corresponde à divisão do Universo em quatro horizontes. No meio da aldeia deixa se muitas vezes um espaço vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telhado representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se, na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado por certos animais (serpente, crocodilo etc.) ou pelos ideogramas das trevash.

“O simbolismo cósmico da aldeia é retomado na estrutura do santuário ou da casa cultual. Em Waropen, na Nova Guiné, a ‘casa dos homens’ encontra-se no meio da aldeia: o telhado representa a abóbada celeste, as quatro paredes correspondem às quatro direções do espaço. Em Ceram, a pedra sagrada da aldeia simboliza o Céu, e as quatro colunas de pedra que a sustentam encarnam os quatro pilares que sustentam o Céu. Encontram-se concepções análogas entre as tribos algonquinas e sioux. A cabana sagrada, onde se realizam as iniciações, representa o Universo. O teto da cabana simboliza a cúpula celeste, o soalho representa a Terra, as quatro paredes as quatro direções do espaço cósmico. A construção ritual do espaço é sublinhada por um triplo simbolismo: as quatro portas, as quatro janelas e as quatro cores significam os quatr o pontos cardeais. A construção da cabana sagrada repete assim a cosmogonia, pois esta casinha representa o Mundo.

“Não é surpreendente encontrar uma concepção similar na Itália antiga e entre os antigos germanos. Trata – se, em suma, de uma idéia arcaica e muito difundida: a partir de um Centro projetam-se os quatro horizontes nas quatro direções cardeais. O mundus romano era uma fossa circular, dividida em quatro; era ao mesmo tempo a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Sugeriu se com razão que a Roma quadrata deve ser entendida não como tendo a forma de um quadrado, mas como sendo dividida em quatro. O mundus era evidentemente equiparado ao omphalos, ao umbigo da Terra: a Cidade (Urbs) situava-se no meio do orbis terrarum. Demonstra-se, assim, que idéias similares explicam a estrutura das aldeias e das cidades germânicas. Em contextos culturais extremamente variados, reencontramos sempre o mesmo esquema cosmológico e a mesma encenação ritual: a instalação num território equivale à fundação de um mundo.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 32 ss., 44 ss.