Khonsu: a luz no meio da noite

Khonsu, Templo de Kom Ombo | Foto: Steve F-E-Cameron

Khonsu, Templo de Kom Ombo | Foto: Steve F-E-Cameron

Seu nome, que significa “Viajante” (ou ainda “Aquele que Encontra o Caminho”, “o Defensor” ou “o Protetor”) reflete o fato de que a Lua (iah, em egípcio) viaja através do céu noturno — e, conforme se acreditava, protegia os viajantes. Como deus da luz no meio da noite, a proteção de Khonsu era invocada tanto contra animais selvagens quanto para aumentar a virilidade masculina e ajudar na cura. Dizia-se que, quando Khonsu fazia brilhar a lua crescente, as mulheres concebiam, o gado ficava fértil e todas as narinas e todas as gargantas se enchiam de ar fresco.

Como “Khonsu” também pode significar “placenta do rei”, nos primeiros tempos acreditava-se que ele matasse os inimigos do faraó e lhes extraía as entranhas para criar algo semelhante a uma placenta para o rei — aspecto sanguinário que fazia com que fosse denominado, em textos antigos como os dos Livros das Pirâmides e dos Sarcófagos, como “Aquele que vive dos corações”. Com o tempo, porém, esse aspecto feroz se abrandaria; acabou sendo associado também de modo mais literal às placentas e, como deificação da placenta faraônica, tornou-se um deus relacionado ao parto. Sua reputação como curador ultrapassou as fronteiras do Egito; uma estela registra como uma princesa de Bekhten foi imediatamente curada de uma doença com a chegada de uma imagem de Khonsu [em inglês, aqui]. E Ptolomeu IV, uma vez curado de uma doença, passou a se intitular “Amado de Khonsu, que Protege Sua Majestade e Afasta os Maus Espíritos”. No Novo Império, chegou a ser descrito como o “Maior Deus dos Grandes Deuses”, tendo substituído Montu como filho de Mut na tríade tebana; em seu templo em Karnak, há uma cosmogonia em que ele é descrito como a grande cobra que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Khonsu, deus-menino e deus-falcão

Khonsu, deus-menino e deus-falcão

Khonsu costuma ser retratado como uma múmia com o símbolo da infância, a cabeça raspada deixando apenas uma madeixa na lateral, e, às vezes, com o colar menat e o cajado e o açoite. Tem íntima ligação com outras crianças divinas, como Hórus, e às vezes apresenta-se com cabeça de falcão, adornada com o disco solar e o crescente da lua nova, que sustenta o disco da lua cheia. Ocasionalmente se apresenta montando um ganso, carneiro ou dois crocodilos. Seu animal sagrado era o babuíno, considerado um animal lunar pelos antigos egípcios.

A Tríade Tebana

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

O nome egípcio de Tebas, cidade do Alto Egito próxima à Núbia, era Waset (“Cidade do cetro”). A designação “Tebas”, de origem grega, é uma corruptela de Ta-opet (ou Ipet-isut, “O mais seleto dos lugares”), nome egípcio da área do complexo de templos da cidade, Karnak – que permaneceu em construção e expansão durante 2 mil anos, em vista da crença egípcia de que o templo precisava ser mantido “vivo”.

Cidade de pouca monta durante boa parte da história egípcia, a partir do Império Novo Tebas adquiriu relevância por ser a sede dos reis fundadores da XVIII Dinastia, responsáveis pela expulsão dos hicsos, primeiros estrangeiros a invadir e dominar o Egito.

Hieróglifo de mut, "mãe": o abutre era, para os egípcios, o máximo da maternidade

Mut, “mãe”

O principal deus da cidade era Amon, associado ao oculto e, em Tebas, demiurgo, retirando essa função de Rá — o que fez de Tebas a primeira cidade criada e, portanto, centro do Mundo e modelo para as demais. Na elaboração tebana, Amon tinha por consorte não Amaunet, mas Mut — palavra que significava “mãe” em egípcio e era, originalmente, um atributo das águas primordiais do cosmos em seu aspecto feminino, Naunet; com o tempo, porém, maternidade e águas cósmicas diferenciaram-se e as duas identidades se separaram. Assim, Mut ganhou contornos de uma deusa criadora, como a Grande Mãe que engendrara o Cosmos. O hieróglifo que representava seu nome e a palavra “mãe” era um abutre — a encarnação suprema da maternidade, visto que, para os egípcios, todas essas aves, por não apresentarem dimorfismo sexual, eram do sexo feminino e concebiam seus filhos fertilizadas pelo vento (Amon), outro conceito partenogênico.

Compondo a tríade central do panteão tebano, dizia-se que Mut havia adotado Montu. Deus antigo (de quem havia um culto anterior em Tebas, como indicam as fundações de um santuário anterior ao templo dedicado ao deus, a nordeste do de Amon) cujo nome significa “nômade”, Montu originalmente era uma manifestação do efeito escaldante do sol, Rá — e, como tal, aparecia sob o epíteto Montu-Rá, divindade suprema do Alto Egito até a ascensão de Amon.

Planta do complexo de templos de Karnak

Planta do complexo de templos de Karnak

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Ver no Google Maps

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Explore a área no Google Maps

Complexo de templos de Karnak | Vídeo da Unesco

Com o tempo, porém, em vista da benignidade de Amon e Mut (e sob a justificativa de que o isheru, o lago sagrado junto ao templo de Mut em Karnak, tinha a forma de uma lua crescente), Montu foi perdendo seus atributos agressivos até acabar sendo substituído como filho de Mut pelo deus lunar Khonsu — cujo templo em Karnak ostenta em uma parede uma cosmogonia em que Khonsu é descrito como a grande serpente que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Necrópoles de Tebas (Vale dos Reis
e Vale das Rainhas) | Vídeo da Unesco