Por Cristiana Serra | Continuação deste post
A visão de mundo egípcia no Antigo Império tinha o faraó, por um lado, como encarnação e mantenedor da maat (a ordem cósmica fundada pelos deuses) e, por outro, como homem exemplar e único destinado a gozar da imortalidade solar — crença fundamentada no culto ao sol, Rá, de quem o rei era ao mesmo tempo filho e manifestação (ba), e no culto aos antepassados mortos, expresso no mito de Osíris e Hórus, seu filho e sucessor, patrono do faraó. Essa dualidade entre o princípio solar, representado por Rá, e o ctônico, representado por Osíris, permaneceu entranhada no espírito egípcio e encontrou, em todos os níveis de sua sociedade e cultura, uma ampla variedade de expressões. Aparece, por exemplo, na intransponível tensão entre o Alto e o Baixo Egitos e no fato de que o Egito será, sempre, um reino composto por dois sub-reinos unidos, sem nunca chegar a uma integração inextrincável, como revelam a dupla coroa egípcia, chamada de “As Duas Potências”, e, mais significativamente em uma cultura em que o sincretismo é uma vocação natural e o processo de identificação e desidentificação entre os deuses se faz e desfaz com fluidez e espontaneidade, o monarca será protegido por duas divindades mantidas teimosamente separadas — Wadjet, a serpente de bote armado e protetora do Baixo Egito, e Nekhbet, a deusa-abutre padroeira do Alto Egito. Em nenhuma imagem, porém, o paradoxo inerente à cultura egípcia desponta com mais clareza do que na não-destruição de Set, que deve ser suplantado a cada micro e macrociclo temporal: diariamente, a cada (re)nascer do sol; anualmente, a cada novo ciclo das estações de cheia, recuada das águas e seca; e na sucessão dos faraós. A cada ciclo temporal se repete a vitória de Hórus sobre Set, a vitória da maat, a ordem estabelecida do cosmos, sobre as forças do caos; ou seja, a recriação do mundo ao emergir do caos das águas primordiais, materializada ao mesmo tempo pela emergência diária do Sol do Duat, o mundo inferior, após sua vitória sobre a serpente Apófis, o arquidemônio, e pela sucessão das cheias do Nilo e a refertilização da terra negra das margens, propiciada por Osíris e sinal de sua vitória sobre Set e a terra vermelha do deserto. Set é vencido, mas jamais destruído, por encarnar, em última instância, a não-ordem (i.e., o caos) cuja existência virtual é inerente à da própria ordem; ontologicamente, a impossibilidade de eliminá-lo é a impossibilidade de extirpar do Ser o não-Ser que é sua consequência lógica.