Tensões religiosas entre Rá e Osíris (2): crise, ruptura da ordem cósmica, desespero e elaboração

Por Cristiana Serra | Continuação deste post

A visão de mundo egípcia no Antigo Império tinha o faraó, por um lado, como encarnação e mantenedor da maat (a ordem cósmica fundada pelos deuses) e, por outro, como homem exemplar e único destinado a gozar da imortalidade solar — crença fundamentada no culto ao sol, Rá, de quem o rei era ao mesmo tempo filho e manifestação (ba), e no culto aos antepassados mortos, expresso no mito de Osíris e Hórus, seu filho e sucessor, patrono do faraó. Essa dualidade entre o princípio solar, representado por Rá, e o ctônico, representado por Osíris, permaneceu entranhada no espírito egípcio e encontrou, em todos os níveis de sua sociedade e cultura, uma ampla variedade de expressões. Aparece, por exemplo, na intransponível tensão entre o Alto e o Baixo Egitos e no fato de que o Egito será, sempre, um reino composto por dois sub-reinos unidos, sem nunca chegar a uma integração inextrincável, como revelam a dupla coroa egípcia, chamada de “As Duas Potências”, e, mais significativamente em uma cultura em que o sincretismo é uma vocação natural e o processo de identificação e desidentificação entre os deuses se faz e desfaz com fluidez e espontaneidade, o monarca será protegido por duas divindades mantidas teimosamente separadas — Wadjet, a serpente de bote armado e protetora do Baixo Egito, e Nekhbet, a deusa-abutre padroeira do Alto Egito. Em nenhuma imagem, porém, o paradoxo inerente à cultura egípcia desponta com mais clareza do que na não-destruição de Set, que deve ser suplantado a cada micro e macrociclo temporal: diariamente, a cada (re)nascer do sol; anualmente, a cada novo ciclo das estações de cheia, recuada das águas e seca; e na sucessão dos faraós. A cada ciclo temporal se repete a vitória de Hórus sobre Set, a vitória da maat, a ordem estabelecida do cosmos, sobre as forças do caos; ou seja, a recriação do mundo ao emergir do caos das águas primordiais, materializada ao mesmo tempo pela emergência diária do Sol do Duat, o mundo inferior, após sua vitória sobre a serpente Apófis, o arquidemônio, e pela sucessão das cheias do Nilo e a refertilização da terra negra das margens, propiciada por Osíris e sinal de sua vitória sobre Set e a terra vermelha do deserto. Set é vencido, mas jamais destruído, por encarnar, em última instância, a não-ordem (i.e., o caos) cuja existência virtual é inerente à da própria ordem; ontologicamente, a impossibilidade de eliminá-lo é a impossibilidade de extirpar do Ser o não-Ser que é sua consequência lógica.

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Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

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Sekhmet: “Aquela Diante de Quem o Mal Estremece”

Estátua de Sekhmet do templo de Mut. Granito, Luxor, Império Novo, ~1403-1365 a.C.

Estátua de Sekhmet do templo de Mut. Granito, Luxor, Império Novo, ~1403-1365 a.C. | Museu Nacional de Arte da Dinamarca

Sekhmet (do egípcio sekhem, “poder” – e, portanto, “a poderosa”, ou ainda “Aquela diante de quem o Mal Estremece”, “Senhora do Terror”, “Senhora da Carnificina”, “Aquela que Marreta”), originalmente uma deusa guerreira e da cura do Alto Egito (além de ligada ao ciclo menstrual das mulheres), era descrita como uma leoa, o mais feroz caçador conhecido dos egípcios. Dizia-se que seu hálito havia formado o deserto. Era considerada protetora dos faraós, a quem conduzia nas batalhas. A fim de aplacar sua fúria, não só eram celebrados festivais após encerradas as escaramuças, para pôr fim à destruição, como também suas sacerdotisas realizavam um ritual diário diante de uma estátua diferente da deusa em cada dia do ano – o que fez com que houvesse muitas imagens da deusa preservadas.

Festival da Embriaguez no templo de Mut, em Luxor | Via

Festival da Embriaguez no templo de Mut, em Luxor | Via

No primeiro mês do ano egípcio, provavelmente em conexão com as celebrações do Ano Novo em seu aspecto orgiástico, no Festival de Hathor para Pacificar Sekhmet os egípcios dançavam e tocavam música para apaziguar a selvageria da deusa, consumindo ritualmente grandes quantidades de vinho a fim de reproduzir a embriaguez que pacificou sua ira quando ela estava prestes a destruir a humanidade, conforme relatado aqui. Outro objetivo era evitar cheias excessivas no início de cada ano, quando o Nilo era tingido de vermelho pelos sedimentos oriundos de sua cabeceira e cabia a Sekhmet engolir o transbordamento, a fim de salvar a humanidade.

Sekhmet, "Aquela Diante de Quem o Mal Estremece"

Sekhmet, “Aquela Diante de Quem o Mal Estremece”

Segundo algumas versões, Sekhmet tinha como filho Maahes, antigo deus egípcio da guerra com cabeça de leão, cujo nome significa “aquele que é verdadeiro ao lado dela” e que seria o filho da deusa felina (Bast no Baixo Egito, Sekhmet no Alto Egito), cuja natureza compartilhava. Em Mênfis, Sekhmet tinha por consorte Ptá e por filho, Nefertum.

Seu culto era tão dominante na cultura que quando o primeiro faraó da XII dinastia, Amenemhat I, transferiu a capital para Itjtawy, o centro de seu culto foi transferido junto. Também apresentava um aspecto solar, sendo às vezes chamada de “filha de Rá” e ligada às deusas Hathor e Bast. Leva o disco solar e o uraeus, que a associam a Wadjet e à realeza, o que permite sua interpretação como árbitra divina da deusa Maat no tribunal de Osíris e a associa ao wedjat (e, posteriormente, ao Olho de Rá), e também a Tefnut, em seu aspecto leonino.

Baixo-relevo da deusa Sekhmet no Templo de Sobek e Haroeris, Kom Ombo (Egito)

Baixo-relevo da deusa Sekhmet no Templo de Sobek e Haroeris, Kom Ombo (Egito)

A origem do Homem

"O deus Xu, os oito deuses da Ogdóade e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (...)"

“O deus Xu, os oito deuses Heh e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (…)”

A origem do Homem não é um aspecto relevante nas cosmogonias egípcias. Se as crianças humanas são moldadas em argila pelo deus Cnum e por ele colocadas no ventre de suas mães, os primeiros Homens (em egípcio, erme, “lágrima”) nascem das lágrimas vertidas por Rá-Atum: uma vez criados por Atum, Xu e Tefnut, curiosos sobre as águas primordiais que os cercavam, foram explorá-las e desapareceram na escuridão. Incapaz de suportar sua perda, Atum enviou um mensageiro de fogo, o Olho de Rá, para encontrar seus filhos. As lágrimas de alegria por ele derramadas quando retornaram foram os primeiros seres humanos. Outras versões atribuem as lágrimas a outros aspectos de Rá, como a criança divina Nefertum na cosmogonia de Hermópolis. De todo modo, as lágrimas seriam um prenúncio da imperfeição da natureza humana e da tristeza de suas vidas.

A partir do Primeiro Período Intermediário (~2198-1938 a.C.), quando o Egito dividiu-se em dois e só voltou a se unificar após uma brutal guerra civil, operou-se uma importante transformação religiosa: o direito à vida após a morte, até então exclusivos dos faraós e suas famílias, foi estendido a todos os nobres e oficiais, ou seja, todos os que pudessem pagar pelos ritos necessários para assegurar esse mesmo direito. É dessa época (Império Médio) que datam os textos coligidos sob o título “Livro da Vaca Celeste”, que parece refletir uma elaboração da traumática ruptura da ordem vivenciada pelos egípcios no período anterior.

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Cosmologia Egípcia

 

A deusa do céu, Nut, engole o sol, que viaja através de seu corpo durante a noite para renascer na aurora.

A deusa do céu, Nut, engole o sol, que viaja através de seu corpo durante a noite para renascer na aurora.

A ma’at, a ordem fundamental do universo estabelecida na criação do Mundo, é que distingue o Mundo do caos que o precedeu e o cerca — note-se aqui a coincidência, no âmbito do sagrado, entre espaço e tempo, que constituem uma única dimensão.

O caos que antecede o mundo ordenado existe para além do mundo como uma extensão infinita de água informe, personificada pelo deus Nun. A Terra, personificada pelo deus Geb, é uma extensão plana de terra sobre a qual se arqueia o céu, representado pela deusa Nut. Os dois são separados pela personificação da atmosfera, o deus Xu. A Via Láctea, chamada pelos egípcios de “Nilo nos céus”,  é um rio pelo qual navegam tanto a lua quanto o sol. Assim, o deus-sol Ra cruza o céu, percorrendo o corpo de Nut, e anima o mundo com sua luz. À noite, Rá transpõe o horizonte ocidental e penetra no Duat, o mundo dos mortos, região misteriosa que faz fronteira com a massa sem forma de Nun. Ao amanhecer, emerge do Duat no horizonte leste. A natureza do céu e a localização do Duat são incertas; há textos egípcios que descrevem a viagem do sol noturno por baixo da terra ou dentro do corpo de Nut.

O Sol ergue-se sobre o akhet, retomando a cosmogonia

O Sol ergue-se sobre o akhet, retomando a cosmogonia

Hieróglifo de akhet, no sentido de "horizonte"

Hieróglifo de akhet, no sentido de “horizonte”

As férteis terras do Vale e Delta do Nilo (respectivamente, o Alto e o Baixo Egitos) localizam-se no centro do Mundo. Para além deles ficam os desertos estéreis, associados ao caos que se encontra nas fronteiras do Mundo. Em algum ponto para além deles situa-se o horizonte, o akhet (literalmente, “montanha de luz”; associado às noções de recriação e renascimento, o termo dava nome também à estação das cheias, que abria o ano egípcio com as inundações que restauravam a fertilidade da terra). Lá, duas montanhas, no leste e no oeste, assinalam os pontos onde o sol entra e sai do Duat.

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Ano Novo: repetição anual da cosmogonia

Marduk enfrenta Tiamat

Marduk enfrenta Tiamat

“É o mito cosmogônico que relata o surgimento do Cosmos. Na Babilônia, no decurso da cerimônia akitu, que se desenrolava nos últimos dias do ano e nos primeiros dias do Ano Novo, recitava-se solenemente o ‘Poema da Criação’, o Enuma Elish. Pela recitação ritual, reatualizava-se o combate entre Marduk e o monstro marinho Tiamat, que tivera lugar ab origine e que pusera fim ao Caos pela vitória final do deus. Marduk criara o Cosmos com o corpo retalhado de Tiamat e criara o homem com o sangue do demônio Kingu, principal aliado de Tiamat. A prova de que essa comemoração da criação era efetivamente uma reatualização do ato cosmogônico encontra-se tanto nos rituais como nas fórmulas pronunciadas no decurso da cerimônia.

“Com efeito, o combate entre Tiamat e Marduk era imitado por uma luta entre os dois grupos de figurantes, cerimonial que se repete entre os hititas, enquadrado sempre no cenário dramático do Ano Novo, entre os egípcios e [na canaanita] Ugarit. A luta entre os dois grupos de figurantes repetia a passagem do Caos ao Cosmos, atualizava a cosmogonia. O acontecimento mítico tornava a ser presente. ‘Que ele possa continuar a vencer Tiamat e abreviar seus dias!’, exclamava o oficiante. O combate, a vitória e a Criação tinham lugar naquele mesmo instante, hic et nunc.

“Visto que o Ano Novo é uma reatualização da cosmogonia, implica uma retomada do Tempo em seus primórdios, quer dizer, a restauração do Tempo primordial, do Tempo ‘puro’, aquele que existia no momento da Criação. É por essa razão que, por ocasião do Ano Novo, se procede a ‘purificações’ e à expulsão dos pecados, dos demônios ou simplesmente de um bode expiatório. Pois não se trata apenas da cessação efetiva de um certo intervalo temporal e do início de um outro intervalo (como imagina, por exemplo, um homem moderno), mas também da abolição do ano passado e do tempo decorrido. Este é, aliás, o sentido das purificações rituais: uma combustão, uma anulação dos pecados e das faltas do indivíduo e da comunidade co mo um todo, e não uma simples ‘purificação’.

Bruegel, O Velho | O combate entre o carnaval e a quaresma

Bruegel, O Velho | O combate entre o carnaval e a quaresma

“O Noruz  – o Ano Novo persa – comemora o dia em que teve lugar a Criação do Mundo e do homem. Era no dia do Noruz  que se efetuava a ‘renovação da Criação’, conforme se exprimia o historiador árabe Alb’runi. O rei proclamava: ‘Eis um novo dia de um novo mês e de um novo ano: é preciso renovar o que o tempo gastou’. O tempo gastara o ser humano, a sociedade, o Cosmos, e esse tempo destruidor era o Tempo profano, a duração propriamente dita: era preciso aboli-la para restabelecer o momento mítico em que o mundo viera à existência, banhado num tempo ‘puro’, ‘forte’ e sagrado. A abolição do Tempo profano decorrido realizava se por meio de rituais que significavam uma espécie de ‘fim do mundo’. A extinção dos fogos, o regresso das almas dos mortos, a confusão social do tipo das Saturnais, a licença erótica, as orgias etc. simbolizavam a regressão do Cosmos ao Caos. No último dia do ano, o Universo dissolvia se nas Águas primordiais. O monstro marinho Tiamat, símbolo das trevas, do amorfo, do não-manifestado, ressuscitava e voltava a ser ameaçador. O Mundo que tinha existido durante um ano inteiro desaparecia realmente. Visto que Tiamat estava lá de novo, o Cosmos estava anulado, e Marduk era forçado a criá-lo mais uma vez, vencendo de novo Tiamat.

“O significado dessa regressão periódica do mundo a uma modalidade caótica era o seguinte: todos os ‘pecados’ do ano, tudo o que o Tempo havia manchado e consumido era aniquilado, no sentido físico do termo. Participando simbolicamente do aniquilamento e da recriação do Mundo, o próprio homem era criado de novo; renascia, porque começava uma nova existência. A cada Ano Novo, o homem sentia-se mais livre e mais puro, pois se libertara do fardo de suas faltas e seus pecados. Restabelecera o Tempo fabuloso da Criação, portanto um Tempo sagrado e ‘forte’: sagrado porque transfigurado pela presença dos deuses; ‘forte’ porque era o Tempo próprio e exclusivo da criação mais gigantesca que já se realizara: a do Universo. Simbolicamente, o homem voltava a ser contemporâneo da cosmogonia, assistia à criação do Mundo. No Oriente Próximo antigo o homem até participava ativamente dessa criação (lembremos os dois grupos antagonistas que figuravam o Deus e o Monstro marinho).

“É fácil compreender por que a recordação desse Tempo prodigioso obcecava o homem, por que, de tempos em tempos, ele se esforçava por voltar a unir se a ele: in illo tempore, os deuses tinham manifestado seus poderes máximos. A cosmogonia é a suprema manifestação divina, o gesto exemplar de força, superabundância e criatividade. O homem religioso é sedento de real. Esforça-se, por todos os meios, para instalar-se na própria fonte da realidade primordial, quando o mundo estava in statu nascendi [em estado de nascimento].”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 70 ss.

Templumtempus: a correspondência circular espaço-temporal

Tipi sagrada dos Arapaho, Wyoming (EUA)

Tipi sagrada dos Arapaho, Wyoming (EUA)

“(…) Em várias línguas das populações aborígines da América do Norte, o termo ‘Mundo’ (= Cosmos) é igualmente utilizado no sentido de ‘Ano’. Os yokut dizem ‘o mundo passou’, para exprimir que ‘um ano se passou’. Para os yuki, o ‘Ano’ é designado pelos vocábulos ‘Terra’ ou ‘Mundo’. Como os yokut, eles dizem ‘a terra passou’, no sentido de que se passou um ano. O vocabulário revela a correspondência religiosa entre o Mundo e o Tempo cósmico. O Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e se extingue no último dia do Ano, para renascer no dia do Ano Novo. (…) Esse renascimento é um nascimento, (…) o Cosmos renasce todos os anos porque, a cada Ano Novo, o Tempo começa ab initio.

“A correspondência cósmico-temporal é de natureza religiosa: o Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o ‘Ano’), pois tanto um como o outro são realidades sagradas, criações divinas. Entre certas populações norte americanas, essa correspondência cósmico-temporal é revelada pela própria estrutura dos edifícios sagrados. Visto que o Templo representa a imagem do Mundo, comporta igualmente um simbolismo temporal. É o que encontramos, por exemplo, entre os algonquinos e os sioux: sua cabana sagrada representa o Universo e simboliza também o ano. Porque o ano é concebido como um trajeto através das quatro direções cardeais, significadas pelas quatro janelas e pelas quatro portas da cabana sagrada. Os dacotas dizem: ‘O Ano é um círculo em volta do Mundo’, quer dizer, em volta da sua cabana sagrada, que é uma imago mundi. (…)

“[O filólogo alemão] Hermann Usener [(1834-1905) foi] o primeiro a explicar o parentesco  etimológico entre templumtempus, ao interpretar os dois termos pela noção de  interseção  (…). Investigações ulteriores afirmaram ainda mais esta descoberta:  ‘Templum exprime o espacial,  tempus o temporal. O conjunto  desses dois elementos constitui uma imagem circular espaço-temporal’.

“(…) Para o homem religioso das culturas arcaicas, o Mundo renova-se anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador. Este simbolismo está claramente indicado na estrutura arquitetônica dos santuários. Visto que o Templo é, ao mesmo tempo, o lugar santo por excelência e a imagem do Mundo, ele santifica o Cosmos como um todo e também a vida cósmica. Ora, a vida cósmica era imaginada sob a forma de uma trajetória circular e identificava-se com o Ano. O Ano era um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder ‘renascer’ sob a forma de um Ano Novo. A cada Ano Novo, um Tempo ‘ novo’, ‘puro’e ‘santo’ — porque ainda não usado — vinha à existência.

“Mas o Tempo renascia, recomeçava, porque, a cada Novo Ano, o Mundo era criado novamente. Verificamos (…) a importância do mito cosmogônico como modelo exemplar para toda espécie de criação e construção. Acrescentemos agora que a cosmogonia comporta igualmente a criação do Tempo. Mais ainda: assim como a cosmogonia é o arquétipo de toda ‘criação’, o Tempo cósmico que a cosmogonia faz brotar é o modelo exemplar de todos os outros tempos, quer dizer, dos Tempos específicos às diversas categorias de existentes. Expliquemo-nos: para o homem religioso das culturas arcaicas, toda criação, toda existência começa no Tempo: antes que uma coisa exista, seu tempo próprio não pode existir. Antes que o Cosmos viesse à existência, não havia tempo cósmico. Antes de uma determinada espécie vegetal ter sido criada, o tempo que a faz crescer agora, dar fruto e perecer, não existia. É por esta razão que toda criação é imaginada como tendo ocorrido no começo do Tempo, in principio. O Tempo brota com a primeira aparição de uma nova categoria de existentes. Eis por que o mito desempenha um papel tão importante: (…) é o mito que revela como uma realidade veio à existência.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 66 ss.

Tempus Fugit

O fotógrafo canadense Todd McLellan, no livro Things Come Apart: A Teardown Manual for Modern Living, revela as entranhas de 50 objetos do dia a dia.

O fotógrafo canadense Todd McLellan, no livro Things Come Apart: A Teardown Manual for Modern Living, revela as entranhas de 50 objetos do dia a dia.

Por Rubem Alves

Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: Tempus fugit. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes úmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dingue-le-dingue que eu vou para Angola, dingue-le-dingue que eu vou para Angola” de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas — e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não quero morrer…” Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda — (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) — subia numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam, O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. Tempus fugit. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do Tempus fugit pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.

Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, Tempus fugit. Ainda comprarei um outro que diga a mes¬ma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de 5. Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia eterna:
Tempus fugit.
E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões…
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice:
“Estou atrasado, estou atrasado…
Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…

Rubem Alves (1933-2014) foi um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro.

“Estamos todos no inferno”: cosmos vs. caos nas tensões sociais brasileiras hoje

Morro x Asfalto, Centro x Periferia, Caos x Cosmos

Morro x Asfalto, Centro x Periferia, Caos x Cosmos

Circula na internet uma suposta entrevista dada por Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC, ao O Globo (leia aqui). Na verdade, trata-se de uma obra de ficção, publicada na coluna de Arnaldo Jabor na versão impressa do jornal em 23 de maio de 2006 – e o próprio Jabor confirma a autoria do texto fictício na Rádio CBN, no dia 07 de julho de 2006. O equívoco foi bem esclarecido pelo pessoal do e-farsas, aqui.

No entanto, o texto, intitulado “Estamos todos no inferno”, enganou e segue enganando muitos leitores, que acreditam piamente na sua veracidade. E o que nos interessa aqui é salientar justamente como, justamente por ser inverídico, ele pode apontar para uma verdade mais profunda: a realidade muito concreta daquilo que Olívio Tavares de Araújo chama, em artigo a respeito no Observatório da Imprensa (aqui), de “medo de classe”, e um comentário no Jornal da Ordem (aqui), de “pavor do cidadão médio” – isto é, o pânico inspirado pela ameaça de invasão (e destruição) do “nosso mundo” (cosmos) pelas forças do “outro mundo” (caos).

Como assinala Eliade (v. aqui):

“Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mesmas imagens quando se trata de formular os perigos que ameaçam certo tipo de civilização: fala-se do ‘caos’, de ‘desordem’, das ‘trevas’ onde ‘nosso mundo’ se afundará. Todas essas expressões significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica, e a re-imersão num estado fluido, amorfo, enfim, caótico. Isto prova, ao que parece, que as imagens exemplares sobrevivem ainda na linguagem e nos estribilhos do homem não religioso. Algo da concepção religiosa do Mundo prolonga-se ainda no comportamento do homem profano, embora ele nem sempre tenha consciência dessa herança imemorial.”

É interessante observar a frequência com que a imprensa e as redes sociais dão testemunho da atualidade dessa contraposição entre “nós” e “eles”; entre o “nosso mundo” e a ameaça representada pelo “Outro”, o “demônio” que é portador da destruição e da regressão da “civilização” à “barbárie”, ao caos.

Veja-se, por exemplo, o recente fenômeno dos “rolezinhos“, as incursões coletivas de jovens das periferias nos shoppings, tradicionais redutos das classes média e alta brasileiras – e note-se, em expressões como “incursão”, “marginais”, “periferias”, “redutos”, “apartheid cultural”, a carga simbólica reveladora da oposição cosmos (o campo do “asfalto”, “centro”, “civilização”, “nosso mundo”, “nós”) x caos (o campo do “morro”, “periferia”, “barbárie”, “inferno”, “outro mundo”, “eles”).

A cientista social Rosana Pinheiro-Machado comenta, em artigo na Carta Capital (aqui):

“Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que discriminação fosse tão grande que eles pudessem assustar. Muito pelo contrário: eles faziam um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno a transitar pelo shopping. Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente.”

Comentando o caso, Leonardo Boff (aqui) denuncia: “os marginalizados do mundo inteiro estão saindo da margem e indo rumo ao centro para suscitar a má consciência dos ‘consumidores felizes’ e lhes dizer: esta ordem é ordem na desordem. Ela os faz frustrados e infelizes, tomados de medo, medo dos próprios semelhantes que somos nós”. No entanto, o medo que quem está no centro tem de quem está nas periferias não é o medo do seu “semelhante” – muito pelo contrário, é o medo ao “Outro”, o arquidemônio, o mensageiro do Caos. O desejo do menino de “ser visto como gente” aponta justamente isto: no embate entre as forças da ordem e a desordem da dissolução do mundo no caos, simbolicamente ele não é “gente”, e sabe disso. Seu estatuto simbólico é outro: o Outro.