Ano Novo: repetição anual da cosmogonia

Marduk enfrenta Tiamat

Marduk enfrenta Tiamat

“É o mito cosmogônico que relata o surgimento do Cosmos. Na Babilônia, no decurso da cerimônia akitu, que se desenrolava nos últimos dias do ano e nos primeiros dias do Ano Novo, recitava-se solenemente o ‘Poema da Criação’, o Enuma Elish. Pela recitação ritual, reatualizava-se o combate entre Marduk e o monstro marinho Tiamat, que tivera lugar ab origine e que pusera fim ao Caos pela vitória final do deus. Marduk criara o Cosmos com o corpo retalhado de Tiamat e criara o homem com o sangue do demônio Kingu, principal aliado de Tiamat. A prova de que essa comemoração da criação era efetivamente uma reatualização do ato cosmogônico encontra-se tanto nos rituais como nas fórmulas pronunciadas no decurso da cerimônia.

“Com efeito, o combate entre Tiamat e Marduk era imitado por uma luta entre os dois grupos de figurantes, cerimonial que se repete entre os hititas, enquadrado sempre no cenário dramático do Ano Novo, entre os egípcios e [na canaanita] Ugarit. A luta entre os dois grupos de figurantes repetia a passagem do Caos ao Cosmos, atualizava a cosmogonia. O acontecimento mítico tornava a ser presente. ‘Que ele possa continuar a vencer Tiamat e abreviar seus dias!’, exclamava o oficiante. O combate, a vitória e a Criação tinham lugar naquele mesmo instante, hic et nunc.

“Visto que o Ano Novo é uma reatualização da cosmogonia, implica uma retomada do Tempo em seus primórdios, quer dizer, a restauração do Tempo primordial, do Tempo ‘puro’, aquele que existia no momento da Criação. É por essa razão que, por ocasião do Ano Novo, se procede a ‘purificações’ e à expulsão dos pecados, dos demônios ou simplesmente de um bode expiatório. Pois não se trata apenas da cessação efetiva de um certo intervalo temporal e do início de um outro intervalo (como imagina, por exemplo, um homem moderno), mas também da abolição do ano passado e do tempo decorrido. Este é, aliás, o sentido das purificações rituais: uma combustão, uma anulação dos pecados e das faltas do indivíduo e da comunidade co mo um todo, e não uma simples ‘purificação’.

Bruegel, O Velho | O combate entre o carnaval e a quaresma

Bruegel, O Velho | O combate entre o carnaval e a quaresma

“O Noruz  – o Ano Novo persa – comemora o dia em que teve lugar a Criação do Mundo e do homem. Era no dia do Noruz  que se efetuava a ‘renovação da Criação’, conforme se exprimia o historiador árabe Alb’runi. O rei proclamava: ‘Eis um novo dia de um novo mês e de um novo ano: é preciso renovar o que o tempo gastou’. O tempo gastara o ser humano, a sociedade, o Cosmos, e esse tempo destruidor era o Tempo profano, a duração propriamente dita: era preciso aboli-la para restabelecer o momento mítico em que o mundo viera à existência, banhado num tempo ‘puro’, ‘forte’ e sagrado. A abolição do Tempo profano decorrido realizava se por meio de rituais que significavam uma espécie de ‘fim do mundo’. A extinção dos fogos, o regresso das almas dos mortos, a confusão social do tipo das Saturnais, a licença erótica, as orgias etc. simbolizavam a regressão do Cosmos ao Caos. No último dia do ano, o Universo dissolvia se nas Águas primordiais. O monstro marinho Tiamat, símbolo das trevas, do amorfo, do não-manifestado, ressuscitava e voltava a ser ameaçador. O Mundo que tinha existido durante um ano inteiro desaparecia realmente. Visto que Tiamat estava lá de novo, o Cosmos estava anulado, e Marduk era forçado a criá-lo mais uma vez, vencendo de novo Tiamat.

“O significado dessa regressão periódica do mundo a uma modalidade caótica era o seguinte: todos os ‘pecados’ do ano, tudo o que o Tempo havia manchado e consumido era aniquilado, no sentido físico do termo. Participando simbolicamente do aniquilamento e da recriação do Mundo, o próprio homem era criado de novo; renascia, porque começava uma nova existência. A cada Ano Novo, o homem sentia-se mais livre e mais puro, pois se libertara do fardo de suas faltas e seus pecados. Restabelecera o Tempo fabuloso da Criação, portanto um Tempo sagrado e ‘forte’: sagrado porque transfigurado pela presença dos deuses; ‘forte’ porque era o Tempo próprio e exclusivo da criação mais gigantesca que já se realizara: a do Universo. Simbolicamente, o homem voltava a ser contemporâneo da cosmogonia, assistia à criação do Mundo. No Oriente Próximo antigo o homem até participava ativamente dessa criação (lembremos os dois grupos antagonistas que figuravam o Deus e o Monstro marinho).

“É fácil compreender por que a recordação desse Tempo prodigioso obcecava o homem, por que, de tempos em tempos, ele se esforçava por voltar a unir se a ele: in illo tempore, os deuses tinham manifestado seus poderes máximos. A cosmogonia é a suprema manifestação divina, o gesto exemplar de força, superabundância e criatividade. O homem religioso é sedento de real. Esforça-se, por todos os meios, para instalar-se na própria fonte da realidade primordial, quando o mundo estava in statu nascendi [em estado de nascimento].”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 70 ss.