Tensões religiosas entre Rá e Osíris (2): crise, ruptura da ordem cósmica, desespero e elaboração

Por Cristiana Serra | Continuação deste post

A visão de mundo egípcia no Antigo Império tinha o faraó, por um lado, como encarnação e mantenedor da maat (a ordem cósmica fundada pelos deuses) e, por outro, como homem exemplar e único destinado a gozar da imortalidade solar — crença fundamentada no culto ao sol, Rá, de quem o rei era ao mesmo tempo filho e manifestação (ba), e no culto aos antepassados mortos, expresso no mito de Osíris e Hórus, seu filho e sucessor, patrono do faraó. Essa dualidade entre o princípio solar, representado por Rá, e o ctônico, representado por Osíris, permaneceu entranhada no espírito egípcio e encontrou, em todos os níveis de sua sociedade e cultura, uma ampla variedade de expressões. Aparece, por exemplo, na intransponível tensão entre o Alto e o Baixo Egitos e no fato de que o Egito será, sempre, um reino composto por dois sub-reinos unidos, sem nunca chegar a uma integração inextrincável, como revelam a dupla coroa egípcia, chamada de “As Duas Potências”, e, mais significativamente em uma cultura em que o sincretismo é uma vocação natural e o processo de identificação e desidentificação entre os deuses se faz e desfaz com fluidez e espontaneidade, o monarca será protegido por duas divindades mantidas teimosamente separadas — Wadjet, a serpente de bote armado e protetora do Baixo Egito, e Nekhbet, a deusa-abutre padroeira do Alto Egito. Em nenhuma imagem, porém, o paradoxo inerente à cultura egípcia desponta com mais clareza do que na não-destruição de Set, que deve ser suplantado a cada micro e macrociclo temporal: diariamente, a cada (re)nascer do sol; anualmente, a cada novo ciclo das estações de cheia, recuada das águas e seca; e na sucessão dos faraós. A cada ciclo temporal se repete a vitória de Hórus sobre Set, a vitória da maat, a ordem estabelecida do cosmos, sobre as forças do caos; ou seja, a recriação do mundo ao emergir do caos das águas primordiais, materializada ao mesmo tempo pela emergência diária do Sol do Duat, o mundo inferior, após sua vitória sobre a serpente Apófis, o arquidemônio, e pela sucessão das cheias do Nilo e a refertilização da terra negra das margens, propiciada por Osíris e sinal de sua vitória sobre Set e a terra vermelha do deserto. Set é vencido, mas jamais destruído, por encarnar, em última instância, a não-ordem (i.e., o caos) cuja existência virtual é inerente à da própria ordem; ontologicamente, a impossibilidade de eliminá-lo é a impossibilidade de extirpar do Ser o não-Ser que é sua consequência lógica.

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Joseph Campbell e o Poder do Mito

 

Joseph Campbell e Bill Moyers em "O Poder do Mito"

Joseph Campbell e Bill Moyers em “O Poder do Mito”

O documentário “Joseph Campbell e o Poder do Mito”, produzido pela rede de televisão americana PBS, foi dividido em seis episódios contendo uma hora de conversa entre o mitólogo Joseph Campbell (1904-1987) e o jornalista Bill Moyers.

As entrevistas dos primeiros cinco episódios foram filmadas no Rancho Skywalker, de George Lucas, na Califórnia, e a sexta foi realizada no Museu Americano de História Natural, em Nova York, nos dois últimos verões da vida de Campbell. (A série foi levada ao ar em 1988, um ano após sua morte.) Nessas conversas, Campbell apresenta suas idéias sobre a mitologia comparada e o papel do mito, ainda hoje, na sociedade humana.

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Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

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A nostalgia das origens e a obsessão ontológica

“(…) Restabelecer o Tempo sagrado da origem equivale a tornarmo-nos contemporâneos dos deuses, portanto a viver na presença deles – embora esta presença seja ‘misteriosa’, no sentido de que nem sempre é visível. A intencionalidade decifrada na experiência do Espaço e do Tempo sagrados revela o desejo de reintegrar uma situação primordial: aquela em que os deuses e os Antepassados míticos estavam presentes, quer dizer, estavam em vias de criar o Mundo, ou de organizá-lo ou de revelar aos homens os fundamentos da civilização. Essa ‘situação primordial’ não é de ordem histórica, não é cronologicamente calculável; trata se de uma anterioridade mítica, do Tempo da ‘origem’, do que se passou ‘no começo’, in principiam.

“Ora, ‘no começo’ passava-se isto: os Seres divinos ou semidivinos estavam ativos sobre a Terra. A nostalgia das ‘origens’ equivale, pois, a uma nostalgia religiosa. O homem deseja reencontrar a presença ativa dos deuses, deseja igualmente viver no Mundo recente, puro e ‘forte’, tal qual saíra das mãos do Criador. É a nostalgia da perfeição dos primórdios que explica em grande parte o retorno periódico in illo tempore. Em termos cristãos, poder-se-ia dizer que se trata de uma ‘nostalgia do Paraíso’, embora, ao nível das culturas primitivas, o contexto religioso e ideológico seja totalmente diferente do contexto do judaísmo cristianismo. Mas o Tempo mítico que o homem se esforça por reatualizar periodicamente é um Tempo santificado pela presença divina, e pode se dizer que o desejo de viver na presença divina e num mundo perfeito (porque recém-nascido) corresponde à nostalgia de uma situação paradisíaca.

“(…) seria um erro acreditar que o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas recusa-se a assumir a responsabilidade de uma existência autêntica. Pelo contrário, ele assume corajosamente enormes responsabilidades: por exemplo, a de colaborar na criação do Cosmos, criar seu próprio mundo, ou assegurar a vida das plantas e dos animais etc. (…) Trata-se de uma responsabilidade no plano cósmico, diferente das responsabilidades de ordem moral, social ou histórica, as únicas conhecidas pelas civilizações modernas. Na perspectiva da existência profana, o homem só reconhece responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. Para ele, o Universo não constitui um Cosmos, ou seja, uma unidade viva e articulada; é simplesmente a soma das reservas materiais e de energias físicas do planeta.

“(…) aqui, é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma característica essencial do homem das sociedades primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do Ser. No plano existencial, esta experiência traduz-se pela certeza de poder recomeçar periodicamente a vida com o máximo de ‘sorte’. É, com efeito, não somente uma visão otimista da existência, mas também uma adesão total ao Ser. Por todos os seus comportamentos, o homem religioso proclama que só acredita no Ser e que sua participação no Ser lhe é afiançada pela revelação primordial da qual ele é o guardião.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 81 ss.

A vida no limiar e no centro: o povo Haida

O povo Haida tradicionalmente vivia no litoral das atuais Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá. A leste ficava o continente norte-americano; a oeste, 11 mil quilômetros de oceano aberto. Eram, e são, uma cultura de fronteira — de uma zona no limiar entre terra e mar, entre o mundo dos animais e o dos deuses. Viviam em “um mundo mais antigo, em que os deuses são tão inumeráveis, numinosos, fatais e locais quanto as orcas, as pedras e as árvores”. (Robert Bringhurst, “A Story as Sharp as a Knife”, p. 18)

No idioma Haida clássico, eles se consideravam habitantes das Xhaaydla Gwaayaay — as “Ilhas na Fronteira entre os Mundos“. Ao mesmo tempo, porém, viviam — como toda cultura — no centro do mundo.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá, ambiente do povo Haida.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, costa oeste do Canadá, lar do povo Haida, no limiar entre mar e terra. | Clique para ampliar

A história do povo Haida remonta a milhares de anos antes da chegada dos europeus. Os Haida testemunharam mudanças profundas em sua terra e conseguiram sobreviver e prosperar graças aos recursos fornecidos pelo mar e pela floresta, tornando-se uma das civilizações culturalmente mais avançadas da América do Norte.

A cultura Haida teve a peculiaridade de combinar um estilo de vida baseado na caça e na coleta e o estabelecimento de cidades, em geral associada a uma cultura agrícola. Coletavam alimento duas vezes ao dia, na vazante; comiam frutas e outros vegetais colhidos nas florestas, e caçavam a grande variedade de animais da região.

“Mesmo sem agricultura, os Haida viviam como prósperos fazendeiros em cidades de porte considerável. Sua rica tradição artística e literatura oral tem suas raízes na presença constante do mar. Só raramente o maná cai dos céus — mas emerge todos os dias das ondas. Assim, o domínio divino primordial, na cosmologia Haida, não é celestial, é submarino.” (Idem, p. 65)

O ambiente em que os Haida viviam, morriam e contavam suas histórias era complexo. Haida Gwaii (como chamavam sua terra natal) era uma terra de água; água que bordejava suas aldeias praianas, que caía constantemente dos céus, e corria pelas florestas, nutrindo e dando vida a todas as suas criaturas, fossem estas humanas, animais ou míticas. A terra dos Haida é verde, densa e úmida, e seus mitos e arte refletem claramente a paisagem que habitavam.

As aldeias Haida situavam-se sobretudo nas praias, e é nesse espaço intermediário que a vida humana existia (assim como a cultura Haida como um todo existia na zona intermediária entre continente e oceano). As histórias começavam quando o Homem dava o pequeno passo necessário para transpor o limiar de um mundo para outro, que o levava do espaço intersticial do mundo humano para o mundo da floresta, do mar ou do céu, pertencente aos animais ou deuses. “Os seres humanos só se encontram em casa na xhaaydla, a fronteira ou região entremarés, na conjunção dos três. Bastavam algumas remadas ou um poucos passos para dentro do mato para deixar o mundo humano para trás” (idem, p. 155).

De todos os animais e seres espirituais do mundo dos Haida, nenhum era mais significativo para o senso de si desse povo que o Corvo — deus, trickster, criador do mundo, que convida os primeiros humanos a deixar seu esconderijo para desfrutar do novo mundo:

O grande dilúvio, que cobriu a Terra por tanto tempo, tinha por fim recuado e a areia de Haida Gwaii estava seca. O Corvo andava pela areia, de olhos e ouvidos atentos a qualquer visão ou som incomuns que quebrassem a monotonia. Um brilho branco chamou sua atenção e ali, bem aos seus pés, semienterrada na areia, estava uma concha gigante. Olhando mais de perto, ele notou que ela estava repleta de minúsculas criaturas, encolhidas de terror sob sua enorme sombra. Inclinou sua cabeçorra e, usando de toda a sua malandragem, tratou de alternadamente persuadi-los, seduzi-los e coagi-los a sair e brincar naquele mundo novinho em folha. Esses pequeninos eram os Haida originais, os primeiros seres humanos. (Bill Reid, “The Raven and the First Men”)

A sociedade Haida se dividia em duas partes, Águia e Corvo. A Águia representava a sociedade humana central, regular, o caminho da esquerda. Era ela que regia a coleta de alimentos, a transmissão dos julgamentos, os casamentos. O Corvo presidia o cambiante reino do mito, aquele passo que era preciso dar para deixar o mundo humano para trás e adentrar o domínio da arte e dos contos.

Sobre o Corvo, Claude Lévi-Strauss comenta:

O fato de os ameríndios porem um personagem tão insidioso, insolente, libidinoso, e, muitas vezes, grotesco, com um pendor para a escatologia, no ápice de seu panteão, talvez surpreenda alguns. Mas o pensamento indígena situa o Corvo no limiar entre duas eras (…). Já não se pode fazer qualquer coisa. O trickster descobre isso — muitas vezes ao custo da própria integridade. (…) O Corvo é ao mesmo tempo o maior rebelde e o legislador supremo. (Bringhurst e Reid, “The Raven Steals the Light”, do prefácio)

O trickster é capaz de cruzar fronteiras com grande facilidade, e o Corvo consegue navegar com facilidade o espaço liminar dos Haida, abrindo caminho para que os Haida façam o mesmo, como exige o contexto onde vivem. O Corvo “sabe como escapar por entre os poros, e como bloqueá-los; confunde as polaridades voltando sobre os próprios passos e invertendo seu próprio rumo; cobre seus rastros e torce seus significados; e é politrópico, mudando de pele ou de forma conforme cada situação exige.”(Lewis Hyde, “Trickster Makes this World”, p. 62)

Baseado em parte em Allison Steiger, aqui

O necessário resgate do sagrado

Por Leonardo Boff

Uma dimensão sine que non para inaugurar uma nova aliança para com a Terra reside no resgate da dimensão do sagrado. Sem o sagrado a afirmação da dignitas terrae e de seus direitos permanece uma retórica sem efeito. O sagrado constitui uma experiência fundadora. Ele subjaz às experiências que deram origem às religiões e às culturas humanas.

Os últimos séculos se caracterizam por uma sistemática intervenção nos ritmos da natureza a ponto de ficarmos surdos à musicalidade dos seres e cegos face à grandeur do céu estrelado. Com isso perdemos a experiência do sagrado do universo. Em seu lugar entrou a vigorar vasta profanidade, que reduziu o universo a uma realidade inerte, mecânica e matemática e a Terra a um simples armazém de recursos entregues à disponibilidade humana. Tirou-se a palavra de todas as coisas, para que só a palavra humana imperasse.

Se não conseguirmos resgatar o sagrado, dificilmente garantiremos o respeito à Terra e aos demais seres que possuem um valor intrínseco. A ecologia se transformará numa técnica de simples gerenciamento da voracidade humana mas jamais em sua superação. A pretendida nova aliança significará apenas uma trégua para que a Terra se refaça das chagas recebidas, para logo em seguida receber outras, porque o padrão das relações agressivas não mudou nem transformou nossa atitude básica de ausência de respeito e de sacralidade.

Antes de qualquer outra coisa, cumpre que nos reencantemos com o universo. Isso foi bem expresso pelo astronauta norte-americano Edgar D. Mitchell, em 1971, sobre a Apolo l4 a caminho da lua. Exclamava boquiaberto: “Daqui a milhares de milhas de distância, a Terra mostra a incrível beleza de uma joia esplêndida de cor azul branca, flutuando no vasto céu escuro. Ela cabe na palma de minha mão. Nela está tudo o que é sagrado e amado por nós”.

Que é o sagrado? Não é uma coisa. É uma qualidade das coisas, que de forma envolvente nos toma totalmente, nos fascina, nos fala ao profundo de nosso ser e nos dá a experiência imediata de respeito, de temor e de veneração.

Rudolf Otto, um clássico estudioso do fenômeno em O Sagrado (Das Heilige), descreve em duas palavras-chave a experiência do sagrado: o tremendum e o fascinosum. O tremendum é aquilo que nos faz tremer por sua magnitude e pelo desbordamento de nossa capacidade de suportar a sua presença. Esta nos faz fugir devido a sua arrasadora intensidade. E ao mesmo tempo, é o fascinosum, vale dizer, aquilo que nos fascina, nos arrasta como um ímã irreprimível porque nos concerne absolutamente. O sagrado é como o sol: sua luz nos arrebata e nos enche de entusiasmo (fascinosum). E ao mesmo tempo nos obriga a desviar o olhar porque pode nos cegar e queimar (tremendum).

É essa experiência ambivalente que os seres humanos originários fizeram e nós ainda podemos fazer em contato com o cosmos, com a Terra, com a vida. com as pessoas carismáticas, com a atração amorosa entre um homem e uma mulher. Sentiram comunicar-se nestas realidades uma força irrefragável, expressa classicamente pela palavra melanésia de mana ou pelo axé das religiões afro. Potencialmente, todas as coisas são portadores de mana ou de axé. São por excelência a revelação do sagrado, sua epifania e diafania.

Por debaixo de tudo opera, como nos dizem os modernos cosmólogos, a Energia fontal, o Abismo gerador de todas as coisas, o Spiritus Creator. O sagrado irrompe em nós quando internalizamos a visão contemporânea do universo em evolução e em cosmogênese. Não basta esta cosmovisão que pode ser encontrada no Google. Do que precisamos é de uma comoção e uma experiência de choque. Precisamos sentirmo-nos dentro destes conhecimentos sobre o cosmos, a Terra e a natureza, porque são conhecimentos sobre nós mesmos, sobre nossa ancestralidade e sobre a nossa realidade mais profunda. São tais comoções que modificam nossas vidas.

Como não se extasiar diante da imensidão de energia ejetada na singularidade do big bang, na formação do campo de Higgs, que permitiu conferir massa às partículas originárias, a constituição das nuvens de gases que originaram a primeira geração de estrelas que. depois de explodirem. deram origem às galáxias, às estrelas, aos planetas e a nós mesmos. É o fascinosum.

Que existe de mais tremendo e misterioso do que a massiva destruição da matéria inicial pela antimatéria sobrando apenas uma bilionésima parte, da qual se origina todo o universo e nós mesmos? Aqui o tremendum se associa ao fascinosum. E poderíamos enumerar outras tantas experiências.

Todas elas nos colocam diante de uma realidade cuja melhor forma de abordá-la é pela teoria da complexidade pela qual os contrários se fazem complementares, aceitar que somos parte e parcela deste Todo. Só nos integramos e nos sentimos em casa quando nos associamos a essa sinfonia e disfonia, quando compreendemos que o bumbo convive com o violino, quando usamos nossa criatividade para agirmos com a natureza e nunca contra ela ou à revelia dela.

Esse sagrado assumido nos faz regressar de nosso exílio e despertar de nossa alienação. Ele nos reintroduz na Casa que havíamos abandonado. Somente uma relação pessoal com a Terra nos faz amá-la. E a quem amamos também não exploramos mas respeitamos e veneramos. Agora poderá começar uma nova era, não de trégua mas de paz perpétua (Kant) e de verdadeira re-ligação de tudo com tudo.

Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor, autor do livro ‘Opção-Terra: A solução para a Terra não cai do céu’ (Record, 2010). – lboff@leonardoboff.com | Fonte

Ganz andere: o numinoso como revelação do “totalmente outro”

Leonardo Boff [1] assinala que o sagrado “não é uma coisa. É uma qualidade das coisas, que de forma envolvente nos toma totalmente, nos fascina, nos fala ao profundo de nosso ser e nos dá a experiência imediata de respeito, de temor e de veneração.” E cita Rudolf Otto, que estudou o fenômeno em seu clássico O sagrado (Das Heilige) e descreveu a experiência do sagrado em duas palavras-chave: o mysterium tremendum e o mysterium fascinans.

“O tremendum é aquilo que nos faz tremer por sua magnitude e pelo desbordamento de nossa capacidade de suportar a sua presença. Esta nos faz fugir devido a sua arrasadora intensidade. E ao mesmo tempo, é o fascinosum, vale dizer, aquilo que nos fascina, nos arrasta como um ímã irreprimível porque nos concerne absolutamente. O sagrado é como o sol: sua luz nos arrebata e nos enche de entusiasmo (fascinosum). E ao mesmo tempo nos obriga a desviar o olhar porque pode nos cegar e queimar (tremendum).” [1]

Nessa experiência comunica-se “uma força irrefragável, expressa classicamente pela palavra melanésia mana ou pelo axé das religiões afro. Potencialmente, todas as coisas são portadoras de mana ou de axé. São por excelência a revelação do sagrado, sua epifania e diafania”. [1]

Otto descreve essa experiência do tremendum, ou majestas, e do fascinosum como “numinosa” (do latim numen, “deus”), na medida em que é provocada pela revelação de um aspecto do poder divino.

“O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere [‘todo outro’], radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de ‘não ser mais do que uma criatura’, ou seja — segundo os termos com que Abraão se dirigiu ao Senhor —, de não ser ‘senão cinza e pó’ (Gênesis, 18: 27). O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades ‘naturais’.” [2]

Já podemos, então, discernir algumas características desse sagrado, em seu aspecto numinoso: na medida em que se manifesta a nós e assim nos é “revelado”, a gratuidade; no ser algo que nos é inteiramente estranho e distinto de tudo o que conhecemos, a alteridade; em sua dimensão de “mistério” — que, no termo grego que lhe deu origem, mystérion, refere-se a algo que é “mantido fechado” —, expressa a impossibilidade humana de apreender (incognoscibilidade) por completo e exprimir o ganz andere.

Eliade propõe o termo hierofania para se referir ao fato de que “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”. [2]

“A história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. (…)

“Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo –  em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano’. (…)

“A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas com pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere.

“Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania.” [2]

“O sagrado está saturado de ser”, e por isso é percebido como a “realidade por excelência”. Implica ao mesmo tempo em “realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo real”.[2] Filosoficamente, podemos traçar um paralelo com a alegoria da caverna de Platão, que já se referia a essa percepção de uma dualidade da realidade.

A matéria, quando sagrada, é carregada de significado, e se torna encarnação do Verbo Divino — uma “Palavra”, porém, que não é propriamente “dita”; ao contrário, ela “acontece”, se realiza. Nesse sentido, o sagrado, como Revelação de um Outro que constitui um ato gratuito de desvelamento do Mistério, implica em um contato, ainda que fugaz, com uma Plenitude (em termos de uma Realidade Plena) que transcende o âmbito profano, “natural” da existência, numa experiência vivida como Deus que se apresenta ao humano e o convida a participar plenamente da sua Criação.


[1] Boff, L. O necessário resgate do sagrado. Aqui
[2] Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 16ss.