Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

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A origem do Homem

"O deus Xu, os oito deuses da Ogdóade e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (...)"

“O deus Xu, os oito deuses Heh e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (…)”

A origem do Homem não é um aspecto relevante nas cosmogonias egípcias. Se as crianças humanas são moldadas em argila pelo deus Cnum e por ele colocadas no ventre de suas mães, os primeiros Homens (em egípcio, erme, “lágrima”) nascem das lágrimas vertidas por Rá-Atum: uma vez criados por Atum, Xu e Tefnut, curiosos sobre as águas primordiais que os cercavam, foram explorá-las e desapareceram na escuridão. Incapaz de suportar sua perda, Atum enviou um mensageiro de fogo, o Olho de Rá, para encontrar seus filhos. As lágrimas de alegria por ele derramadas quando retornaram foram os primeiros seres humanos. Outras versões atribuem as lágrimas a outros aspectos de Rá, como a criança divina Nefertum na cosmogonia de Hermópolis. De todo modo, as lágrimas seriam um prenúncio da imperfeição da natureza humana e da tristeza de suas vidas.

A partir do Primeiro Período Intermediário (~2198-1938 a.C.), quando o Egito dividiu-se em dois e só voltou a se unificar após uma brutal guerra civil, operou-se uma importante transformação religiosa: o direito à vida após a morte, até então exclusivos dos faraós e suas famílias, foi estendido a todos os nobres e oficiais, ou seja, todos os que pudessem pagar pelos ritos necessários para assegurar esse mesmo direito. É dessa época (Império Médio) que datam os textos coligidos sob o título “Livro da Vaca Celeste”, que parece refletir uma elaboração da traumática ruptura da ordem vivenciada pelos egípcios no período anterior.

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A Tríade Tebana

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

O nome egípcio de Tebas, cidade do Alto Egito próxima à Núbia, era Waset (“Cidade do cetro”). A designação “Tebas”, de origem grega, é uma corruptela de Ta-opet (ou Ipet-isut, “O mais seleto dos lugares”), nome egípcio da área do complexo de templos da cidade, Karnak – que permaneceu em construção e expansão durante 2 mil anos, em vista da crença egípcia de que o templo precisava ser mantido “vivo”.

Cidade de pouca monta durante boa parte da história egípcia, a partir do Império Novo Tebas adquiriu relevância por ser a sede dos reis fundadores da XVIII Dinastia, responsáveis pela expulsão dos hicsos, primeiros estrangeiros a invadir e dominar o Egito.

Hieróglifo de mut, "mãe": o abutre era, para os egípcios, o máximo da maternidade

Mut, “mãe”

O principal deus da cidade era Amon, associado ao oculto e, em Tebas, demiurgo, retirando essa função de Rá — o que fez de Tebas a primeira cidade criada e, portanto, centro do Mundo e modelo para as demais. Na elaboração tebana, Amon tinha por consorte não Amaunet, mas Mut — palavra que significava “mãe” em egípcio e era, originalmente, um atributo das águas primordiais do cosmos em seu aspecto feminino, Naunet; com o tempo, porém, maternidade e águas cósmicas diferenciaram-se e as duas identidades se separaram. Assim, Mut ganhou contornos de uma deusa criadora, como a Grande Mãe que engendrara o Cosmos. O hieróglifo que representava seu nome e a palavra “mãe” era um abutre — a encarnação suprema da maternidade, visto que, para os egípcios, todas essas aves, por não apresentarem dimorfismo sexual, eram do sexo feminino e concebiam seus filhos fertilizadas pelo vento (Amon), outro conceito partenogênico.

Compondo a tríade central do panteão tebano, dizia-se que Mut havia adotado Montu. Deus antigo (de quem havia um culto anterior em Tebas, como indicam as fundações de um santuário anterior ao templo dedicado ao deus, a nordeste do de Amon) cujo nome significa “nômade”, Montu originalmente era uma manifestação do efeito escaldante do sol, Rá — e, como tal, aparecia sob o epíteto Montu-Rá, divindade suprema do Alto Egito até a ascensão de Amon.

Planta do complexo de templos de Karnak

Planta do complexo de templos de Karnak

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Ver no Google Maps

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Explore a área no Google Maps

Complexo de templos de Karnak | Vídeo da Unesco

Com o tempo, porém, em vista da benignidade de Amon e Mut (e sob a justificativa de que o isheru, o lago sagrado junto ao templo de Mut em Karnak, tinha a forma de uma lua crescente), Montu foi perdendo seus atributos agressivos até acabar sendo substituído como filho de Mut pelo deus lunar Khonsu — cujo templo em Karnak ostenta em uma parede uma cosmogonia em que Khonsu é descrito como a grande serpente que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Necrópoles de Tebas (Vale dos Reis
e Vale das Rainhas) | Vídeo da Unesco

Cosmologia Egípcia

 

A deusa do céu, Nut, engole o sol, que viaja através de seu corpo durante a noite para renascer na aurora.

A deusa do céu, Nut, engole o sol, que viaja através de seu corpo durante a noite para renascer na aurora.

A ma’at, a ordem fundamental do universo estabelecida na criação do Mundo, é que distingue o Mundo do caos que o precedeu e o cerca — note-se aqui a coincidência, no âmbito do sagrado, entre espaço e tempo, que constituem uma única dimensão.

O caos que antecede o mundo ordenado existe para além do mundo como uma extensão infinita de água informe, personificada pelo deus Nun. A Terra, personificada pelo deus Geb, é uma extensão plana de terra sobre a qual se arqueia o céu, representado pela deusa Nut. Os dois são separados pela personificação da atmosfera, o deus Xu. A Via Láctea, chamada pelos egípcios de “Nilo nos céus”,  é um rio pelo qual navegam tanto a lua quanto o sol. Assim, o deus-sol Ra cruza o céu, percorrendo o corpo de Nut, e anima o mundo com sua luz. À noite, Rá transpõe o horizonte ocidental e penetra no Duat, o mundo dos mortos, região misteriosa que faz fronteira com a massa sem forma de Nun. Ao amanhecer, emerge do Duat no horizonte leste. A natureza do céu e a localização do Duat são incertas; há textos egípcios que descrevem a viagem do sol noturno por baixo da terra ou dentro do corpo de Nut.

O Sol ergue-se sobre o akhet, retomando a cosmogonia

O Sol ergue-se sobre o akhet, retomando a cosmogonia

Hieróglifo de akhet, no sentido de "horizonte"

Hieróglifo de akhet, no sentido de “horizonte”

As férteis terras do Vale e Delta do Nilo (respectivamente, o Alto e o Baixo Egitos) localizam-se no centro do Mundo. Para além deles ficam os desertos estéreis, associados ao caos que se encontra nas fronteiras do Mundo. Em algum ponto para além deles situa-se o horizonte, o akhet (literalmente, “montanha de luz”; associado às noções de recriação e renascimento, o termo dava nome também à estação das cheias, que abria o ano egípcio com as inundações que restauravam a fertilidade da terra). Lá, duas montanhas, no leste e no oeste, assinalam os pontos onde o sol entra e sai do Duat.

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A Cosmogonia Menfita

Os deuses Ptá e Sekhmet flanqueiam o rei, Ramsés II, que assume o papel de seu filho, Nefertum.

Os deuses Ptá e Sekhmet flanqueiam o rei, Ramsés II, que assume o papel de seu filho, Nefertum.

Na cidade de Mênfis, capital dos faraós da I Dinastia, articulou-se, em torno do deus Ptá, a teologia mais sistemática — e a mais antiga, por se tratar do primeiro centro de poder do Reino Unido.

A teologia menfita hoje é conhecida graças ao texto da Pedra de Shabaka, uma estela de granito que o faraó Shabaka (~700 a.C.) mandou gravar a fim de preservar o texto original, registrado cerca de 2 mil anos antes num papiro guardado nos arquivos de um templo de Ptá e que se encontrava já num avançado grau de deterioração (e, com efeito, estudos recentes mostram que o estilo do texto foi premeditadamente escrito de forma a espelhar uma linguagem arcaica. Infelizmente os habitantes de Mênfis acabaram utilizando a pedra como elemento de um moinho, o que lhe provocou alguns estragos.)

Curiosamente, a cosmogonia egípcia mais antiga é também a mais filosófica, como assinala Eliade (p. 95). Nesse sistema, Ptá, simultaneamente Nun e Naunet, é proclamado o maior dos deuses, criador de tudo: foi ele “quem fez com que os deuses existissem” (ibidem). Atum é apenas o criador do primeiro casal divino e um agente da vontade de Ptá — fruto de seu espírito (o “coração”) e de seu verbo (a “língua”): “Aquele que se manifestou como coração, aquele que se manifestou como língua, sob a aparência de Atum, é Ptá, o muito antigo” (ibidem).

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A Ogdóade (Hemenu) de Hermópolis

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra.

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra. | Imagem: Olaf Tausch

Na cidade de Hermópolis (nome dado pelos gregos — que associavam um deus importante na cidade, Tot, ao seu Hermes — à cidade de Khemenu, cujo nome era derivado justamente de sua ogdóade — em egípcio, Hemenu), capital do XV nomo do Alto Egito, dominava um panteão de oito deuses (“ogdóade”) agrupados em quatro pares masculino-feminino. Sua origem variava: por vezes eram apresentados como os primeiros deuses que existiram; em outros casos eram filhos de Atum ou de Xu. Juntos, podem ser entendidos, de todo modo, aspectos do estado fundamental do Ser, aqueles que são o que sempre foram — daí a pouca diferenciação, além do gênero, entre as entidades de cada casal. Com efeito, os nomes das quatro deusas não passam das formas femininas das denominações masculinas, e vice-versa. Ou seja: cada par representa os aspectos masculino e feminino dos seguintes elementos primordiais, a partir dos quais tudo havia se originado:

– Nun e Naunet: as águas primordiais, o oceano infindo primordial, a cheia primeva do Nilo, o caos;
– Heh e Hehet: a eternidade e o espaço infinito (heh significa, em egípcio, “milhão”, e se refere indiscriminadamente ao incomensuravelmente grande tanto em termos de tempo quanto de espaço, dimensões que, no domínio do sagrado, são indistintas);
– Kek e Kauket: as trevas (em egípcio, “o que havia antes da luz”, ou “o portador da luz”);
– Amon e Amaunet: o ar ou o vento em sua característica de invisibilidade, e, nesse sentido do invisível, o oculto.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de rã e as femininas, de cobra.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de sapo e as femininas, de cobra.

As entidades masculinas desse panteão eram representadas como homens com cabeça de sapo (símbolo, para os egípcios, de vida e fertilidade, já que milhões deles nasciam após cada cheia anual do Nilo) e as femininas, como mulheres com cabeça de serpente. A interação entre eles deu origem a uma nova entidade, que, ao se abrir, revelou em seu interior Rá, o disco flamejante do Sol, que, após um intervalo de repouso, criou, com os deuses elementares, todas as demais coisas do Mundo.

Há duas variantes acerca da entidade de onde irrompeu Rá. Na primeira, da interação dos deuses teria emergido das águas primordiais um monte de lodo sobre o qual uma ave celestial — um ganso (ave de Amon) cósmico, ou um íbis (ave associada a Tot), ou ainda um falcão (Hórus) — veio pôr um ovo, do qual nasceu Rá.

Na segunda versão, quando, mais tarde, Atum veio a ser assimilado a Rá como Atum-Rá, adotou-se a crença de que Atum surgira de um botão de lótus azul (uma das variantes da cosmogonia da enéade). O lótus teria emergido das águas em botão, após a interação dos quatro pares de deuses; ou das águas do oceano primordial emergira uma ilha, onde mais tarde seria construída Hermópolis, e nela havia um poço, no qual flutuava um lótus; as divindades masculinas ejacularam sobre ele e o fecundaram. A flor fechou-se durante a noite; quando se abriu, na manhã seguinte, revelou o deus-escaravelho, Khépri, o Sol Nascente, que se transformou em um menino que chorava — Nefertum, de cujas lágrimas se formariam as criaturas da Terra.

A Enéade (Pesedjet) de Heliópolis

O deus da atmosfera, Xu, separa o deus Geb (a terra) da deusa Nut (o céu).

O deus da atmosfera, Xu, separa o deus Geb (a terra) da deusa Nut (o céu).

A palavra enéade, de origem grega (em egípcio diz-se pesedjet), refere-se, no contexto da mitologia egípcia, a um agrupamento de nove divindades, geralmente ligadas entre si por laços familiares. Havia várias enéades, das quais a mais importante era a de Heliópolis, como ficou conhecida (em sua nomenclatura grega) a cidade de Iunu, ou Inunu Mehet (“O Pilar”, ou “O Pilar do Norte”), no Baixo Egito. (Com a perda do sentido etimológico inicial de Pesedjet como grupo de nove deuses, a palavra passou a referir-se a quaisquer agrupamentos de divindades; daí se encontrarem enéades compostas por sete deuses, como a de Abido, ou quinze, em Tebas. Houve ainda uma “Pequena Enéade de Heliópolis”, composta pelos deuses Tot, Anúbis, Maat e Cnum.)

Segundo o mito da criação de Heliópolis, no princípio havia as águas do caos, Nun, das quais emergiu uma colina de lodo, Ben-Ben, em cujo cimo encontrava-se Atum, o primeiro deus (e um dos três aspectos do Sol, Rá-Atum-Khépri: Khépri, o Sol nascente; Rá, o Sol no zênite; e Atum, o Sol poente, no qual fica mais presente o atributo da morte/ressurreição).

Ele se masturbou, ou escarrou, ou tossiu (variações sobre o tema da geração dos deuses a partir da própria substância do deus supremo) e expeliu Xu (a atmosfera) e Tefnut (a umidade/chuva):

“Ele tomou seu pênis em sua mão para dessa forma poder obter o prazer do orgasmo. E irmão e irmã assim nasceram, ou seja, Xu e Tefnut.” (Livro das Pirâmides, 527)

Em algumas versões, Atum engole o próprio sêmen e cospe, formando os gêmeos, ou então o ato de cuspir constitui a procriação. Ambas as opções contêm um jogo de palavras: o som tef, primeira sílaba do nome “Tefnut”, é uma palavra que significa “cuspir” ou “expectorar”.

O Livro dos Sarcófagos contêm referências a Xu sendo espirrado (do nariz) por Atum e Tefnut sendo cuspida como saliva. A teologia menfita descreve Atum masturbando-se na própria boca, antes de cuspir o sêmen e assim gerar os gêmeos.

Os dois irmãos, por sua vez, tiveram outro par de filhos: o deus Geb (a Terra) e a deusa Nut (o Céu), que se encontravam unidos, como na tradição sumeriana, num hieròs gamos [casamento sagrado] ininterrupto — e assim engendraram quatro filhos: Osíris, Isís, Set e Néftis. Xu então ergueu o corpo de Nut acima de Geb, de modo que esta se tornou a abóboda do céu.

O deus da atmosfera, Xu, sustenta a deusa do céu, Nut, neste apoio para cabeça encontrado na tumba do faraó Tutancâmon,

O deus da atmosfera, Xu, sustenta a deusa do céu, Nut, neste apoio para cabeça encontrado na tumba do faraó Tutancâmon,

Osíris era o rei da terra e governava o Egito com justiça e vigor – mas seu irmão, Set, preparou-lhe uma armadilha e conseguiu assassiná-lo. Ísis, sua esposa, uma grande feiticeira, conseguiu ser fecundada por Osíris morto e, depois de sepultá-lo, refugiou-se no delta, onde, oculta entre os papiros, deu à luz Hórus. Este, ao se tornar adulto, fez valer seus direitos perante os demais deuses e investiu contra Set.

Logo no começo do combate, Set conseguiu arrancar-lhe um olho, mas no decorrer da luta Hórus acabou triunfando; recuperou seu olho e o ofereceu a Osíris, que foi ressuscitado como “pessoa espiritual” (ou seja, como alma, o akh) e energia vital responsável, dali por diante, por assegurar a fertilidade vegetal e todas as forças ligadas à reprodução e renovação da vida. “Já por volta de 2750 a.C., Osíris simbolizava as fontes da fecundidade e do crescimento. Em outras palavras, Osíris, o rei assassinado ( = o faraó falecido), garantia a prosperidade do reino regido por seu filho Hórus (representado pelo faraó que acabava de assumir o poder)” (Eliade, p. 103).


 

[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.

Teogonias e cosmogonias egípcias

"Outras versões referem-se ao ovo primordial que continha o 'pássaro de luz', ao lótus original que trouxe ao mundo o Sol criança ou a serpente primitiva (...)"

“Outras versões referem-se ao ovo primordial que continha o ‘pássaro de luz’, ao lótus original que trouxe ao mundo o Sol criança ou a serpente primitiva (…)”

Como é de praxe nas religiões tradicionais, a cosmogonia e os mitos das origens (do Mundo, dos deuses, do homem, da realeza, das instituições sociais, dos rituais etc.) constituíam o cerne da ciência sagrada. Havia um sem-número de mitos cosmogônicos, dando destaque a diferentes deuses e localizando o Centro da criação em uma multiplicidade de centros religiosos. “Com efeito, cada cidade e cada santuáriuo eram considerados um ‘centro do mundo’” [Eliade, p. 94]. De modo geral, porém, os temas estavam alinhados entre os mais arcaicos: a emergência de um outeiro (a ilha ou colina primordial), lótus ou ovo cósmico sobre as águas primordiais. Quanto aos deuses criadores, cada cidade importante punha os seus em primeiro plano. Todavia, para além da assimilação das diversas tradições cosmogônicas — tarefa facilitada pela semelhança estrutural entre os diferentes demiurgos —, os teólogos elaboraram também “sínteses audaciosas, assimilando sistemas religiosos heterogêneos e associando-lhes figuras divinas claramente antagônicas”. [ibidem]

Assim, a cosmogonia egípcia começava pela emergência de um outeiro das águas primordiais —que, se por um lado representava um tema mítico recorrente, no Egito remetia também à renovação anual da ordem cósmica original, a ma’at instaurada in illo tempore (a “Primeira Vez”, Tep zepi) com a emergência das terras ao fim da estação da cheia do Nilo. “O aparecimento desse ‘primeiro lugar’ sobre a imensidão aquática significa a emergência da Terra, e também da luz, da vida e da consciência. (…) O outeiro inicial tornava-se às vezes a montanha cósmica sobre a qual subia o faraó para encontrar o deus-sol” [ibidem]. Outras versões referem-se ao ovo primordial que continha o “pássaro de luz”, ao lótus original que trouxe ao mundo o Sol criança ou a serpente primitiva, primeira e derradeira imagem do deus Atum, que voltará a se transformar em serpente quando o mundo retornar ao estado de caos — o que revela Atum como o deus supremo e oculto e reserva para Rá, o Sol, o lugar do deus manifesto.

Para se ter uma ideia do quanto as descrições e etapas da Criação podiam apresentar-se em versões díspares, pode-se examinar algumas nos links abaixo:

A Enéade (Pesedjet) de Heliópolis
A Ogdóade (Hemenu) de Hermópolis
A Cosmogonia Menfita
A Tríade Tebana
Cosmogonia de Elefantina


[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.

O milagre inesquecível da “Primeira Vez”: a instauração da ma’at e o “imobilismo” egípcio

"A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo."

“A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.” | Via

Se, nas sociedades tradicionais, a fixidez das formas hieráticas e a repetição das gestas levadas a cabo nos primórdios “são a consequência lógica de uma teologia que considerava a ordem cósmica uma obra essencialmente divina, e via em toda mudança o risco de uma regressão ao caos e, por conseguinte, o triunfo das forças demoníacas” [1, p. 93], no Egito essa lógica “conservadora” foi levada ao paroxismo — e a regularidade das cheias do Nilo e a fartura por elas proporcionada certamente contribuíram para reforçar o senso de harmonia e estabilidade da cultura egípcia. Assim, o que os egiptólogos denominam de “imobilismo” traduz o empenho dos egípcios em manter intacta a Criação inicial, perfeita sob todos os aspectos — cosmológico, religioso, social e ético.

Esse tempo das origens, intitulado pelos egípcios de Tep zepi, a “Primeira Vez”, estendeu-se do aparecimento do deus criador sobre as águas primordiais à entronização de Hórus; “tudo aquilo que existe, desde fenômenos naturais até realidades religiosas e culturais (plantas dos templos, calendário, escrita, rituais, insígnias reais etc.) deve sua validade e justificativa ao fato de ter sido criado no decorrer da época inicial” [ibidem]. A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.

Ora, a “Primeira Vez” (e a ordem nela, e por meio dela, instaurada) caracterizou-se pela perfeição absoluta, “antes que a raiva, ou o barulho, a luta ou a desordem fizessem seu aparecimento” [apud 1, p. 93], quando não havia morte nem doença — e foi a partir da intervenção do mal que surgiu a desordem, pondo fim à idade de ouro. Assim, “é justamente essa periodicidade dos ritmos cósmicos que constitui a perfeição instituída nos tempos da ‘Primeira Vez’. A desordem implica uma mudança inútil e, por conseguinte, nociva no ciclo exemplar das mudanças perfeitamente ordenadas” [1, p. 97]. E, por constituir a soma dos modelos a serem imitados, cabia aos homens reatualizar continuamente, por meio dos ritos, esse tempo forte das origens, renovando assim a ma’at (personificada pela deusa Maat) — termo que se traduz por “justiça”, “verdade”, “ordem”, “honestidade”, mas cujo significado geral é “a boa ordem” e, por conseguinte, “o direito”, “a justiça” —, a ordem cósmica fundamental que emergiu no momento da Criação original e refletia, portanto, a perfeição da idade de ouro. “Assim, segundo um dos primeiros textos religiosos, o Criador surgiu o monte de terra primordial somente ‘depois que ele havia substituído o Caos por ma’at.’ O faraó era responsável pela administração da ma’at de acordo com seu divino julgamento; segundo aquele mesmo texto: ‘O Céu [Nut] está satisfeito e a Terra [Geb] se alegra quando sabem que o rei Pepi II substituiu a desordem por ma’at’” [2, p. 71]. Desse modo, se faltava à religião egípcia um livro sagrado ou um conjunto de mandamentos, ela por outro lado dispunha da ma’at como princípio unificador.

De fato, se a ordem social representava um aspecto da ordem cósmica, entende-se que, ao lado da fundação do Mundo a partir do caos primordial, o outro momento decisivo da prodigiosa “Primeira Vez” tivesse sido justamente o advento do faraó. Com efeito, a fundação do Estado unificado equivaleu a uma cosmogonia; o faraó, como deus encarnado, “instaurou um mundo novo, uma civilização infinitamente mais complexa e superior à das aldeias neolíticas. O essencial era assegurar a permanência dessa obra efetuada de acordo com um modelo divino; em outras palavras, evitar as crises suscetíveis de abalar os alicerces do novo mundo. A divindade do faraó constituía a melhor garantia disso. Como o faraó era imortal, sua morte significava somente sua transladação ao Céu. Estava assegurada a continuidade de um deus encarnado para outro deus encarnado e, consequentemente, a continuidade da ordem cósmica e social” [1, p. 93].

Para os egípcios, pois, o Criador foi o primeiro rei — e assim, no Livro dos Mortos, o deus proclama: “Eu sou Atum, quando estava sozinho em Nun [o oceano primordial]. Eu sou Rá na sua primeira manifestação, quando ele começou a governar a sua Criação” [apud 1, p. 97, grifo nosso] — e transmitiu essa prerrogativa a seu filho e sucessor, o primeiro faraó, consagrando a realeza como instituição divina. Conforme vimos no exemplo acima, os gestos do faraó são descritos nos mesmos termos com que se apresentam os gestos de Rá ou certas epifanias solares. Assim, “a criação de Rá é resumida às vezes com palavras precisas: ‘Ele colocou ordem [ma’at] no lugar do caos’. E é nos mesmos termos que se fala de Tutancâmon quando ele restaurou a ordem (…): ‘Ele pôs a ma’at no lugar da mentira (da desordem)’. Da mesma forma, o verbo khay, ‘brilhar’, é empregado indiferentemente para descrever a emergência do Sol no instante da Criação ou em cada aurora, e o aparecimento do faraó na cerimônia da coroação, nas festividades, ou no conselho privado”. [1, p. 97].

“Por constituir o próprio fundamento do cosmo e da vida, a ma’at pode ser conhecida pelos indivíduos isoladamente. Em textos de origens e épocas diferentes, encontram-se declarações como as seguintes: ‘Incita teu coração a conhecer a ma’at!’; ‘Faço com que conheças a coisa da ma’at no teu coração; oxalá possas fazer o que é correto para ti!’; ou: ‘Eu era um homem que amava a ma’at e odiava o pecado, pois sabia que [o pecado] é como que uma abominação a Deus. Com efeito, é Deus que concede o conhecimento necessário. Um príncipe é designado como ‘alguém que conhece a verdade [ma’at] e que é instruído por Deus’. O autor de uma oração a Rá exclama: ‘Oxalá possas introduzir a ma’at no meu coração!’.” [Ibidem]

Com o passar dos séculos, difundiu-se na cultura egípcia a crença de que, diante da deusa Maat, de nada valeriam as riquezas, nem a posição social do falecido; apenas seus atos seriam levados em conta. Com efeito, a existência humana veio a ser compreendida pelos egípcios como um mero segmento de uma jornada eterna presidida e orquestrada por forças sobrenaturais que assumiam a forma das muitas divindades do panteão egípcio. A vida terrena do indivíduo não seria, porém, um mero prólogo de algo maior, mas parte da viagem como um todo. O conceito egípcio de vida após a morte era de um espelhamento da vida na terra (especificamente, a vida no Egito), e quem quisesse desfrutar o resto de sua jornada eterna teria de viver bem esta vida.

Tal crença de que a sorte dos mortos dependia de sua conduta moral enquanto vivos foi uma elaboração original do espírito religioso egípcio. Mil anos mais tarde, essa idéia não fora ainda adotada por nenhum outro povo conhecido. Na Mesopotâmia, por exemplo, ou entre os hebreus, bons e maus enfrentavam, no além, as mesmas vicissitudes, indiscriminadamente. A mitologia egípcia, assim, vai girar em torno do reinado de Rá sobre a terra, de um lado, e dos embates entre os deuses Osíris, Ísis e Hórus e o destruidor Set, in illo tempore; e de seu reflexo no trajeto diário de Rá pela abóbada celeste e em sua jornada noturna através de sua contraparte no Mundo Inferior, o Duat. A temática religiosa central será, para o egípcio, o conflito entre os paladinos da ma’at e as forças da desordem; a importância do faraó para a manutenção da ma’at e a contínua morte e regeneração dos deuses como modelo para a regeneração também da vida humana.


[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.
[2] Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. Pp. 55-86.

História sagrada, historicidade e eternidade

"Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (...). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (...)" | Mais aqui

“Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (…). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (…)” | Mais aqui

“(…) Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o eterno encontro com o mesmo Tempo mítico da origem, santificado pelos deuses, não implicam de modo nenhum uma visão pessimista da vida; ao contrário, é graças a este ‘eterno retorno’ às fontes do sagrado e do real que a existência humana lhe parece salvar-se do nada e da morte.

“A perspectiva muda totalmente quando o sentido da religiosidade cósmica se obscurece. É o que se passa quando, em certas sociedades mais evoluídas, as elites intelectuais se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional. A santificação periódica do Tempo cósmico revela-se então inútil e insignificante. Os deuses já não são acessíveis por meio dos ritmos cósmicos. O significado religioso da repetição dos gestos exemplares é esquecido. Ora, a repetição esvaziada de seu conteúdo conduz necessariamente a uma visão pessimista da existência. Quando deixa de ser um veículo pelo qual se pode restabelecer uma situação primordial e reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, quando é dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico: revela-se como um círculo girando indefinidamente sobre si mesmo, repetindo-se até o infinito. (…)

“A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da época tardia levaram a concepção do Tempo circular aos seus limites extremos. Para citar o belo resumo de H . Ch. Puech: ‘Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao se desenrolar em círculo. Conseqüentemente, todo devir cósmico, assim como a duração deste mundo de geração e corrupção que é o nosso, desenvolver-se-á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclos, no decurso dos quais a mesma realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com uma lei e alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mesma soma de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas também, segundo alguns pensadores do fim da Antiguidade — pitagóricos, estóicos, platônicos —, admite-se que, no interior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, desses aeva, se reproduzem as mesmas situações que se produziram já nos ciclos anteriores e que se reproduzirão nos ciclos subseqüentes – até o infinito. Nenhum acontecimento é único, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo, a condenação e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e anakuklosis, eterno retorno’.

“Quanto às religiões arcaicas e paleorientais, bem como em relação às concepções mítico-filosóficas do Eterno Retorno, tais como foram elaboradas na Índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação importante. Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A idéia do Tempo cíclico é ultrapassada. Iahweh não se manifesta no Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível. Cada nova manifestação de Iahweh na história não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Iahweh contra seu povo, mas não é a mesma que Iahweh exprimira no momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo, o povo escolhido por Iahweh. Assim, o acontecimento histórico ganha um a nova dimensão: torna- se uma teofania.

“O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência .humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Judéia —, mas santificado pela presença do Cristo. Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara — mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia. Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História: já não são fatos que se passaram na origem do Tempo, ‘no começo’. (Acrescentemos porém que para o cristão o Tempo começa de novo com o nascimento do Cristo, porque a encarnação funda uma nova situação do homem no Cosmos.) Em resumo, a História se revela como uma nova dimensão da presença de Deus no mundo. A História volta a ser a História sagrada — tal como foi concebida, dentro de uma perspectiva mítica, nas religiões primitivas e arcaicas.

“O cristianismo conduz a uma teologia e não a uma filosofia da História, pois as intervenções de Deus na história, e sobretudo a Encarnação na pessoa histórica de Jesus Cristo, têm uma finalidade trans-histórica — a salvação do homem.

“Hegel retoma a ideologia judaico-cristã e aplica-a à História universal em sua totalidade: o Espírito universal manifesta se contínua, e unicamente, nos acontecimentos históricos. A História, em sua totalidade, torna- se, pois, uma teofania: tudo o que se passou na História devia passar-se assim, pois assim o quis o Espírito universal. É a via aberta para as diferentes formas de filosofia historicista do século XX. (…) o historicismo é o produto da decomposição do cristianismo: ele concede uma importância decisiva ao acontecimento histórico (o que é uma idéia de origem cristã), mas ao acontecimento histórico como tal, quer dizer, negando-lhe toda possibilidade de revelar uma intenção soteriológica, trans-histórica.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 92 ss.