Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

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Nefertum, “o Lótus do Sol”

Nefertum na Tumba de Horemheb

Nefertum na Tumba de Horemheb, ao lado de um tyet, o “Cinturão de Ísis”

Nefertum (possivelmente “O Belo que Fecha” ou “Aquele que Não Fecha”) era, na mitologia egípcia, originalmente uma flor de lótus que emergiu das águas primordiais na criação do mundo. Representava tanto a primeira luz do sol quanto o delicioso aroma do lótus azul egípcio, Nymphaea caerulea. Alguns de seus epítetos eram “Aquele que é Belo” e “o Lótus do Sol”; uma versão do Livro dos Mortos diz:

“Erga-se, como Nefertum do lótus azul, até as narinas de Rá, e desponte no horizonte a cada dia.”

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

Nefertum, "o Lótus do Sol"

Nefertum, “o Lótus do Sol”

A sacralidade do lótus, especialmente o azul, para os egípcios, estava relacionada à característica dessa flor que se fecha à noite e afunda na água, ressurgindo e voltando a florescer pela manhã, erguendo-se na ponta de um longo caule como se efetivamente desejasse alcançar o céu. Isso fez dela um símbolo natural do Sol, da criação e do renascimento, em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação: Nefertum emerge, como criança, das negras águas primordiais de seu pai, Nun, e tem o céu, Nut, por mãe. Ao amadurecer, torna-se Rá, o próprio Sol.

Nefertum veio ainda a ser visto como filho do deus-criador Ptá, tendo as deusas Sekhmet (e/ou Bastet) por mãe. Na arte, em geral é descrito como um jovem belo, com o lótus azul na cabeça. Como filho de Sekhmet-Bastet, às vezes apresenta-se com cabeça de leão, ou como um leão ou gato reclinando-se.

Nefertum | Karnak

Nefertum | Karnak

Sekhmet: “Aquela Diante de Quem o Mal Estremece”

Estátua de Sekhmet do templo de Mut. Granito, Luxor, Império Novo, ~1403-1365 a.C.

Estátua de Sekhmet do templo de Mut. Granito, Luxor, Império Novo, ~1403-1365 a.C. | Museu Nacional de Arte da Dinamarca

Sekhmet (do egípcio sekhem, “poder” – e, portanto, “a poderosa”, ou ainda “Aquela diante de quem o Mal Estremece”, “Senhora do Terror”, “Senhora da Carnificina”, “Aquela que Marreta”), originalmente uma deusa guerreira e da cura do Alto Egito (além de ligada ao ciclo menstrual das mulheres), era descrita como uma leoa, o mais feroz caçador conhecido dos egípcios. Dizia-se que seu hálito havia formado o deserto. Era considerada protetora dos faraós, a quem conduzia nas batalhas. A fim de aplacar sua fúria, não só eram celebrados festivais após encerradas as escaramuças, para pôr fim à destruição, como também suas sacerdotisas realizavam um ritual diário diante de uma estátua diferente da deusa em cada dia do ano – o que fez com que houvesse muitas imagens da deusa preservadas.

Festival da Embriaguez no templo de Mut, em Luxor | Via

Festival da Embriaguez no templo de Mut, em Luxor | Via

No primeiro mês do ano egípcio, provavelmente em conexão com as celebrações do Ano Novo em seu aspecto orgiástico, no Festival de Hathor para Pacificar Sekhmet os egípcios dançavam e tocavam música para apaziguar a selvageria da deusa, consumindo ritualmente grandes quantidades de vinho a fim de reproduzir a embriaguez que pacificou sua ira quando ela estava prestes a destruir a humanidade, conforme relatado aqui. Outro objetivo era evitar cheias excessivas no início de cada ano, quando o Nilo era tingido de vermelho pelos sedimentos oriundos de sua cabeceira e cabia a Sekhmet engolir o transbordamento, a fim de salvar a humanidade.

Sekhmet, "Aquela Diante de Quem o Mal Estremece"

Sekhmet, “Aquela Diante de Quem o Mal Estremece”

Segundo algumas versões, Sekhmet tinha como filho Maahes, antigo deus egípcio da guerra com cabeça de leão, cujo nome significa “aquele que é verdadeiro ao lado dela” e que seria o filho da deusa felina (Bast no Baixo Egito, Sekhmet no Alto Egito), cuja natureza compartilhava. Em Mênfis, Sekhmet tinha por consorte Ptá e por filho, Nefertum.

Seu culto era tão dominante na cultura que quando o primeiro faraó da XII dinastia, Amenemhat I, transferiu a capital para Itjtawy, o centro de seu culto foi transferido junto. Também apresentava um aspecto solar, sendo às vezes chamada de “filha de Rá” e ligada às deusas Hathor e Bast. Leva o disco solar e o uraeus, que a associam a Wadjet e à realeza, o que permite sua interpretação como árbitra divina da deusa Maat no tribunal de Osíris e a associa ao wedjat (e, posteriormente, ao Olho de Rá), e também a Tefnut, em seu aspecto leonino.

Baixo-relevo da deusa Sekhmet no Templo de Sobek e Haroeris, Kom Ombo (Egito)

Baixo-relevo da deusa Sekhmet no Templo de Sobek e Haroeris, Kom Ombo (Egito)

Khonsu: a luz no meio da noite

Khonsu, Templo de Kom Ombo | Foto: Steve F-E-Cameron

Khonsu, Templo de Kom Ombo | Foto: Steve F-E-Cameron

Seu nome, que significa “Viajante” (ou ainda “Aquele que Encontra o Caminho”, “o Defensor” ou “o Protetor”) reflete o fato de que a Lua (iah, em egípcio) viaja através do céu noturno — e, conforme se acreditava, protegia os viajantes. Como deus da luz no meio da noite, a proteção de Khonsu era invocada tanto contra animais selvagens quanto para aumentar a virilidade masculina e ajudar na cura. Dizia-se que, quando Khonsu fazia brilhar a lua crescente, as mulheres concebiam, o gado ficava fértil e todas as narinas e todas as gargantas se enchiam de ar fresco.

Como “Khonsu” também pode significar “placenta do rei”, nos primeiros tempos acreditava-se que ele matasse os inimigos do faraó e lhes extraía as entranhas para criar algo semelhante a uma placenta para o rei — aspecto sanguinário que fazia com que fosse denominado, em textos antigos como os dos Livros das Pirâmides e dos Sarcófagos, como “Aquele que vive dos corações”. Com o tempo, porém, esse aspecto feroz se abrandaria; acabou sendo associado também de modo mais literal às placentas e, como deificação da placenta faraônica, tornou-se um deus relacionado ao parto. Sua reputação como curador ultrapassou as fronteiras do Egito; uma estela registra como uma princesa de Bekhten foi imediatamente curada de uma doença com a chegada de uma imagem de Khonsu [em inglês, aqui]. E Ptolomeu IV, uma vez curado de uma doença, passou a se intitular “Amado de Khonsu, que Protege Sua Majestade e Afasta os Maus Espíritos”. No Novo Império, chegou a ser descrito como o “Maior Deus dos Grandes Deuses”, tendo substituído Montu como filho de Mut na tríade tebana; em seu templo em Karnak, há uma cosmogonia em que ele é descrito como a grande cobra que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Khonsu, deus-menino e deus-falcão

Khonsu, deus-menino e deus-falcão

Khonsu costuma ser retratado como uma múmia com o símbolo da infância, a cabeça raspada deixando apenas uma madeixa na lateral, e, às vezes, com o colar menat e o cajado e o açoite. Tem íntima ligação com outras crianças divinas, como Hórus, e às vezes apresenta-se com cabeça de falcão, adornada com o disco solar e o crescente da lua nova, que sustenta o disco da lua cheia. Ocasionalmente se apresenta montando um ganso, carneiro ou dois crocodilos. Seu animal sagrado era o babuíno, considerado um animal lunar pelos antigos egípcios.

A origem do Homem

"O deus Xu, os oito deuses da Ogdóade e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (...)"

“O deus Xu, os oito deuses Heh e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (…)”

A origem do Homem não é um aspecto relevante nas cosmogonias egípcias. Se as crianças humanas são moldadas em argila pelo deus Cnum e por ele colocadas no ventre de suas mães, os primeiros Homens (em egípcio, erme, “lágrima”) nascem das lágrimas vertidas por Rá-Atum: uma vez criados por Atum, Xu e Tefnut, curiosos sobre as águas primordiais que os cercavam, foram explorá-las e desapareceram na escuridão. Incapaz de suportar sua perda, Atum enviou um mensageiro de fogo, o Olho de Rá, para encontrar seus filhos. As lágrimas de alegria por ele derramadas quando retornaram foram os primeiros seres humanos. Outras versões atribuem as lágrimas a outros aspectos de Rá, como a criança divina Nefertum na cosmogonia de Hermópolis. De todo modo, as lágrimas seriam um prenúncio da imperfeição da natureza humana e da tristeza de suas vidas.

A partir do Primeiro Período Intermediário (~2198-1938 a.C.), quando o Egito dividiu-se em dois e só voltou a se unificar após uma brutal guerra civil, operou-se uma importante transformação religiosa: o direito à vida após a morte, até então exclusivos dos faraós e suas famílias, foi estendido a todos os nobres e oficiais, ou seja, todos os que pudessem pagar pelos ritos necessários para assegurar esse mesmo direito. É dessa época (Império Médio) que datam os textos coligidos sob o título “Livro da Vaca Celeste”, que parece refletir uma elaboração da traumática ruptura da ordem vivenciada pelos egípcios no período anterior.

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A Cosmogonia Menfita

Os deuses Ptá e Sekhmet flanqueiam o rei, Ramsés II, que assume o papel de seu filho, Nefertum.

Os deuses Ptá e Sekhmet flanqueiam o rei, Ramsés II, que assume o papel de seu filho, Nefertum.

Na cidade de Mênfis, capital dos faraós da I Dinastia, articulou-se, em torno do deus Ptá, a teologia mais sistemática — e a mais antiga, por se tratar do primeiro centro de poder do Reino Unido.

A teologia menfita hoje é conhecida graças ao texto da Pedra de Shabaka, uma estela de granito que o faraó Shabaka (~700 a.C.) mandou gravar a fim de preservar o texto original, registrado cerca de 2 mil anos antes num papiro guardado nos arquivos de um templo de Ptá e que se encontrava já num avançado grau de deterioração (e, com efeito, estudos recentes mostram que o estilo do texto foi premeditadamente escrito de forma a espelhar uma linguagem arcaica. Infelizmente os habitantes de Mênfis acabaram utilizando a pedra como elemento de um moinho, o que lhe provocou alguns estragos.)

Curiosamente, a cosmogonia egípcia mais antiga é também a mais filosófica, como assinala Eliade (p. 95). Nesse sistema, Ptá, simultaneamente Nun e Naunet, é proclamado o maior dos deuses, criador de tudo: foi ele “quem fez com que os deuses existissem” (ibidem). Atum é apenas o criador do primeiro casal divino e um agente da vontade de Ptá — fruto de seu espírito (o “coração”) e de seu verbo (a “língua”): “Aquele que se manifestou como coração, aquele que se manifestou como língua, sob a aparência de Atum, é Ptá, o muito antigo” (ibidem).

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A Ogdóade (Hemenu) de Hermópolis

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra.

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra. | Imagem: Olaf Tausch

Na cidade de Hermópolis (nome dado pelos gregos — que associavam um deus importante na cidade, Tot, ao seu Hermes — à cidade de Khemenu, cujo nome era derivado justamente de sua ogdóade — em egípcio, Hemenu), capital do XV nomo do Alto Egito, dominava um panteão de oito deuses (“ogdóade”) agrupados em quatro pares masculino-feminino. Sua origem variava: por vezes eram apresentados como os primeiros deuses que existiram; em outros casos eram filhos de Atum ou de Xu. Juntos, podem ser entendidos, de todo modo, aspectos do estado fundamental do Ser, aqueles que são o que sempre foram — daí a pouca diferenciação, além do gênero, entre as entidades de cada casal. Com efeito, os nomes das quatro deusas não passam das formas femininas das denominações masculinas, e vice-versa. Ou seja: cada par representa os aspectos masculino e feminino dos seguintes elementos primordiais, a partir dos quais tudo havia se originado:

– Nun e Naunet: as águas primordiais, o oceano infindo primordial, a cheia primeva do Nilo, o caos;
– Heh e Hehet: a eternidade e o espaço infinito (heh significa, em egípcio, “milhão”, e se refere indiscriminadamente ao incomensuravelmente grande tanto em termos de tempo quanto de espaço, dimensões que, no domínio do sagrado, são indistintas);
– Kek e Kauket: as trevas (em egípcio, “o que havia antes da luz”, ou “o portador da luz”);
– Amon e Amaunet: o ar ou o vento em sua característica de invisibilidade, e, nesse sentido do invisível, o oculto.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de rã e as femininas, de cobra.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de sapo e as femininas, de cobra.

As entidades masculinas desse panteão eram representadas como homens com cabeça de sapo (símbolo, para os egípcios, de vida e fertilidade, já que milhões deles nasciam após cada cheia anual do Nilo) e as femininas, como mulheres com cabeça de serpente. A interação entre eles deu origem a uma nova entidade, que, ao se abrir, revelou em seu interior Rá, o disco flamejante do Sol, que, após um intervalo de repouso, criou, com os deuses elementares, todas as demais coisas do Mundo.

Há duas variantes acerca da entidade de onde irrompeu Rá. Na primeira, da interação dos deuses teria emergido das águas primordiais um monte de lodo sobre o qual uma ave celestial — um ganso (ave de Amon) cósmico, ou um íbis (ave associada a Tot), ou ainda um falcão (Hórus) — veio pôr um ovo, do qual nasceu Rá.

Na segunda versão, quando, mais tarde, Atum veio a ser assimilado a Rá como Atum-Rá, adotou-se a crença de que Atum surgira de um botão de lótus azul (uma das variantes da cosmogonia da enéade). O lótus teria emergido das águas em botão, após a interação dos quatro pares de deuses; ou das águas do oceano primordial emergira uma ilha, onde mais tarde seria construída Hermópolis, e nela havia um poço, no qual flutuava um lótus; as divindades masculinas ejacularam sobre ele e o fecundaram. A flor fechou-se durante a noite; quando se abriu, na manhã seguinte, revelou o deus-escaravelho, Khépri, o Sol Nascente, que se transformou em um menino que chorava — Nefertum, de cujas lágrimas se formariam as criaturas da Terra.