A origem do Homem

"O deus Xu, os oito deuses da Ogdóade e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (...)"

“O deus Xu, os oito deuses Heh e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (…)”

A origem do Homem não é um aspecto relevante nas cosmogonias egípcias. Se as crianças humanas são moldadas em argila pelo deus Cnum e por ele colocadas no ventre de suas mães, os primeiros Homens (em egípcio, erme, “lágrima”) nascem das lágrimas vertidas por Rá-Atum: uma vez criados por Atum, Xu e Tefnut, curiosos sobre as águas primordiais que os cercavam, foram explorá-las e desapareceram na escuridão. Incapaz de suportar sua perda, Atum enviou um mensageiro de fogo, o Olho de Rá, para encontrar seus filhos. As lágrimas de alegria por ele derramadas quando retornaram foram os primeiros seres humanos. Outras versões atribuem as lágrimas a outros aspectos de Rá, como a criança divina Nefertum na cosmogonia de Hermópolis. De todo modo, as lágrimas seriam um prenúncio da imperfeição da natureza humana e da tristeza de suas vidas.

A partir do Primeiro Período Intermediário (~2198-1938 a.C.), quando o Egito dividiu-se em dois e só voltou a se unificar após uma brutal guerra civil, operou-se uma importante transformação religiosa: o direito à vida após a morte, até então exclusivos dos faraós e suas famílias, foi estendido a todos os nobres e oficiais, ou seja, todos os que pudessem pagar pelos ritos necessários para assegurar esse mesmo direito. É dessa época (Império Médio) que datam os textos coligidos sob o título “Livro da Vaca Celeste”, que parece refletir uma elaboração da traumática ruptura da ordem vivenciada pelos egípcios no período anterior.

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Tempus Fugit

O fotógrafo canadense Todd McLellan, no livro Things Come Apart: A Teardown Manual for Modern Living, revela as entranhas de 50 objetos do dia a dia.

O fotógrafo canadense Todd McLellan, no livro Things Come Apart: A Teardown Manual for Modern Living, revela as entranhas de 50 objetos do dia a dia.

Por Rubem Alves

Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: Tempus fugit. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes úmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dingue-le-dingue que eu vou para Angola, dingue-le-dingue que eu vou para Angola” de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas — e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não quero morrer…” Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda — (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) — subia numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam, O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. Tempus fugit. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do Tempus fugit pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.

Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, Tempus fugit. Ainda comprarei um outro que diga a mes¬ma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de 5. Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia eterna:
Tempus fugit.
E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões…
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice:
“Estou atrasado, estou atrasado…
Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…

Rubem Alves (1933-2014) foi um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro.

A vida no limiar e no centro: o povo Haida

O povo Haida tradicionalmente vivia no litoral das atuais Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá. A leste ficava o continente norte-americano; a oeste, 11 mil quilômetros de oceano aberto. Eram, e são, uma cultura de fronteira — de uma zona no limiar entre terra e mar, entre o mundo dos animais e o dos deuses. Viviam em “um mundo mais antigo, em que os deuses são tão inumeráveis, numinosos, fatais e locais quanto as orcas, as pedras e as árvores”. (Robert Bringhurst, “A Story as Sharp as a Knife”, p. 18)

No idioma Haida clássico, eles se consideravam habitantes das Xhaaydla Gwaayaay — as “Ilhas na Fronteira entre os Mundos“. Ao mesmo tempo, porém, viviam — como toda cultura — no centro do mundo.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá, ambiente do povo Haida.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, costa oeste do Canadá, lar do povo Haida, no limiar entre mar e terra. | Clique para ampliar

A história do povo Haida remonta a milhares de anos antes da chegada dos europeus. Os Haida testemunharam mudanças profundas em sua terra e conseguiram sobreviver e prosperar graças aos recursos fornecidos pelo mar e pela floresta, tornando-se uma das civilizações culturalmente mais avançadas da América do Norte.

A cultura Haida teve a peculiaridade de combinar um estilo de vida baseado na caça e na coleta e o estabelecimento de cidades, em geral associada a uma cultura agrícola. Coletavam alimento duas vezes ao dia, na vazante; comiam frutas e outros vegetais colhidos nas florestas, e caçavam a grande variedade de animais da região.

“Mesmo sem agricultura, os Haida viviam como prósperos fazendeiros em cidades de porte considerável. Sua rica tradição artística e literatura oral tem suas raízes na presença constante do mar. Só raramente o maná cai dos céus — mas emerge todos os dias das ondas. Assim, o domínio divino primordial, na cosmologia Haida, não é celestial, é submarino.” (Idem, p. 65)

O ambiente em que os Haida viviam, morriam e contavam suas histórias era complexo. Haida Gwaii (como chamavam sua terra natal) era uma terra de água; água que bordejava suas aldeias praianas, que caía constantemente dos céus, e corria pelas florestas, nutrindo e dando vida a todas as suas criaturas, fossem estas humanas, animais ou míticas. A terra dos Haida é verde, densa e úmida, e seus mitos e arte refletem claramente a paisagem que habitavam.

As aldeias Haida situavam-se sobretudo nas praias, e é nesse espaço intermediário que a vida humana existia (assim como a cultura Haida como um todo existia na zona intermediária entre continente e oceano). As histórias começavam quando o Homem dava o pequeno passo necessário para transpor o limiar de um mundo para outro, que o levava do espaço intersticial do mundo humano para o mundo da floresta, do mar ou do céu, pertencente aos animais ou deuses. “Os seres humanos só se encontram em casa na xhaaydla, a fronteira ou região entremarés, na conjunção dos três. Bastavam algumas remadas ou um poucos passos para dentro do mato para deixar o mundo humano para trás” (idem, p. 155).

De todos os animais e seres espirituais do mundo dos Haida, nenhum era mais significativo para o senso de si desse povo que o Corvo — deus, trickster, criador do mundo, que convida os primeiros humanos a deixar seu esconderijo para desfrutar do novo mundo:

O grande dilúvio, que cobriu a Terra por tanto tempo, tinha por fim recuado e a areia de Haida Gwaii estava seca. O Corvo andava pela areia, de olhos e ouvidos atentos a qualquer visão ou som incomuns que quebrassem a monotonia. Um brilho branco chamou sua atenção e ali, bem aos seus pés, semienterrada na areia, estava uma concha gigante. Olhando mais de perto, ele notou que ela estava repleta de minúsculas criaturas, encolhidas de terror sob sua enorme sombra. Inclinou sua cabeçorra e, usando de toda a sua malandragem, tratou de alternadamente persuadi-los, seduzi-los e coagi-los a sair e brincar naquele mundo novinho em folha. Esses pequeninos eram os Haida originais, os primeiros seres humanos. (Bill Reid, “The Raven and the First Men”)

A sociedade Haida se dividia em duas partes, Águia e Corvo. A Águia representava a sociedade humana central, regular, o caminho da esquerda. Era ela que regia a coleta de alimentos, a transmissão dos julgamentos, os casamentos. O Corvo presidia o cambiante reino do mito, aquele passo que era preciso dar para deixar o mundo humano para trás e adentrar o domínio da arte e dos contos.

Sobre o Corvo, Claude Lévi-Strauss comenta:

O fato de os ameríndios porem um personagem tão insidioso, insolente, libidinoso, e, muitas vezes, grotesco, com um pendor para a escatologia, no ápice de seu panteão, talvez surpreenda alguns. Mas o pensamento indígena situa o Corvo no limiar entre duas eras (…). Já não se pode fazer qualquer coisa. O trickster descobre isso — muitas vezes ao custo da própria integridade. (…) O Corvo é ao mesmo tempo o maior rebelde e o legislador supremo. (Bringhurst e Reid, “The Raven Steals the Light”, do prefácio)

O trickster é capaz de cruzar fronteiras com grande facilidade, e o Corvo consegue navegar com facilidade o espaço liminar dos Haida, abrindo caminho para que os Haida façam o mesmo, como exige o contexto onde vivem. O Corvo “sabe como escapar por entre os poros, e como bloqueá-los; confunde as polaridades voltando sobre os próprios passos e invertendo seu próprio rumo; cobre seus rastros e torce seus significados; e é politrópico, mudando de pele ou de forma conforme cada situação exige.”(Lewis Hyde, “Trickster Makes this World”, p. 62)

Baseado em parte em Allison Steiger, aqui

Indra e o desfile de formigas

"(...) um poderoso Dragão chamado Vrtra (...)  represou  dentro  de  si  todas  as  águas  do  universo   (...). O  rei dos Devas, Indra, Senhor  do Céu e dos relâmpagos, então, atirou um raio  no Dragão e explodiu Vrtra, e a  água  fluiu  novamente  sobre  a  Terra  e  o  universo  teve  sua  sede  saciada."

“(…) um poderoso Dragão chamado Vrtra (…) represou dentro de si todas as águas do universo (…). O rei dos Devas, Indra, Senhor do Céu e dos relâmpagos, então, atirou um raio no Dragão e explodiu Vrtra, e a água fluiu novamente sobre a Terra e o universo teve sua sede saciada.”

Segundo a mitologia védica, um poderoso Dragão chamado Vrtra, rei dos demônios Asuras, represou dentro de si todas as águas do universo e houve, então, uma grande seca cósmica que durou milhares de anos. O rei dos Devas, Indra, Senhor do Céu e dos relâmpagos, então, atirou um raio no Dragão e explodiu Vrtra, e… a água fluiu novamente sobre a Terra e o universo teve sua sede saciada. A vitalidade havia recomeçado a brotar. As águas se libertaram e correram pela terra, circulando mais uma vez pelo corpo do mundo. E o sangue que corria pelas veias do Dragão morto se transformou na seiva dos campos e florestas. Os deuses voltaram para o topo da montanha central da Terra e passaram a reinar lá do alto. Como recompensa pelo seu feito, Indra se proclamou rei dos deuses da Terra, responsável por toda vida do planeta, fosse mineral, vegetal ou animal. Decidiu, então, fazer da Terra um majestoso palácio, como nenhum outro no universo e convocou o espírito humano, Vishvakarman, o artífice dos deuses.

— Vamos construir uma civilização inteiramente nova aqui, que seja merecedora da minha dignidade — disse Indra.

Então, Vishvakarman começa as obras. Porém, Indra sempre volta com novas ideias, exigências absurdas e detalhes grandiosos. O empreiteiro começa a pensar: “Meu Deus, ambos somos imortais, então esse trabalho não vai terminar nunca. O que eu posso fazer?” Então, decide procurar Brahma, o criador do Universo e queixar-se a ele sobre o trabalho interminável a que está submetido.

Brahma é onipotente, onipresente, onisciente, infinito, além do espaço e do tempo é o Brahma. Ele não tem atributos como a forma, a magnitude e as qualidades e está além do tempo, do espaço e da imaginação por isso não pode ser descrito com palavras. Brahma é o absoluto, supremo, impessoal, infinito, eterno, a fonte précósmica da divindade, a causa de todas as causas, sem começo e sem fim, do qual todo emana e ao qual todo retorna.

Quando Vishvakarman entrou, Brahma estava sentado em um lótus que cresce a partir do umbigo de Víshnu — o mestre dos sonhos, modelador de todas as formas — dormindo e flutuando no espaço cósmico, montado em uma grande serpente. E ao fundo, Shiva, Senhor do Tempo e da Morte, dançava sua dança de espadas com seus seis braços. Brahma é o Criador do Universo; Vishnu, o preservador da vida; e Shiva, o transformador de todas as formas. Eles criavam e destruíam mundos.

Ao ouvir o pedido de Vishvakarman, Brahma diz: “Tudo bem. Vou dar um jeito nisso”.

Na manhã seguinte, logo cedo, chegaram ao portal do palácio de Indra dois brâmanes: um menino de apenas dez anos, vestido em ricas túnicas azuis e um velho ancião, coberto apenas por alguns panos velhos vermelhos. Ambos caminhavam juntos com elegância, exalando sabedoria e graça, tinha um olhar sereno e extático, como se estivessem com os seus pensamentos perdidos no infinito.

O rei dos deuses recebe-os em seu trono, no salão central do palácio, e depois de os cumprimentar formalmente, perguntou aos visitantes santos:

— Ó veneráveis brâmanes, dizei-me o propósito de vossa vinda.

A bela criança respondeu:

— Ó Indra, rei dos deuses, ouvi falar do majestoso palácio que estás construindo, e vim te fazer algumas perguntas. Quantos anos levará para que fique pronto? Que outras proezas de engenharia o artesão Vishvakarman será solicitado a realizar? Ó Supremo dentre os Deuses, nenhum Indra antes de ti conseguiu terminar um palácio como será o teu e gostaríamos e saber como pretende fazê-lo.

— Indras anteriores a mim? — perguntou Indra, confuso — Do que você está falando?

— Sim, Indras anteriores a você — diz o jovem. — Pare e pense: o lótus cresce do umbigo de Vishnu, então, desabrocha e nele se senta Brahma. Brahma abre os olhos e nasce um novo universo, governado por um Indra. Ele fecha os olhos. Abre-os novamente — outro universo, um novo Indra. Fecha os olhos… e, durante toda sua vida (311.040.000.000.000 anos terrestres), Brahma faz isso — até que chegue o momento da encerrar a grande expansão e começar a grande retração do universo, quando todas as coisas criadas serão absorvidas à unidade primordial.

— Então o lótus murcha e, após uma eternidade, outro lótus desabrocha, aparece Brahma, abre os olhos, fecha os olhos… Indras, Indras e mais Indras — completou o visitante mais velho —, cada galáxia do universo um lótus, todas com seu Brahma. Vários homens levariam várias vidas para contar as gotas d’água do oceano e os grãos de areia das praias do mundo; mas quem contaria esses Brahmas, sem falar nos Indras? Quem será capaz de contar os universos que desapareceram, ou as criações que brotaram de novo do abismo amorfo das águas? Quem saberá contar as eras que passam no mundo? E quem irá vasculhar as vastas infinitudes do espaço para contar os universos lado a lado, cada qual com seu Brahma e seuVishnu? Quem há de contar todos os Indras, ascendendo um a um ao reinado divino, e um após outro desaparecendo?

Enquanto falavam, um formigueiro gigantesco, marchando em milhares de colunas perfeitas, aproximou-se pelo teto, paredes e piso do palácio de Indra. Os visitantes as olham e riem entre si.

— Do que vocês estão rindo?

— Melhor não te contar — disseram ambos, rindo ainda mais.

— Ó veneráveis visitantes — Ó criança — suplicou Indra, com uma nova e visível humildade. — Não sei quem sois. Revela-me esse segredo de todas as eras, essa luz que dissipa a escuridão.

— Cada uma dessas formigas já foi um Indra um dia — disse o menino, completando em seguida — Como você, cada uma matou o dragão Vrtra e ascendeu à categoria de deus planetário. Agora, porém, através de muitos renascimentos e reencarnações, cada um voltou a se transformar em formiga — concluiu o menino, olhando serenamente para seu anfitrião humilhado. O rei dos deuses da terra, do mar e do céu, apesar de todo seu esplendor, tornarase insignificante diante de seus próprios olhos.

— Quem são vocês? Quais os seus nomes? Onde moram? — perguntou Indra.

— Não temos família, nem casa — respondeu o mais velho. — A vida é curta. Toda vez que morre um Indra, cai um fio de cabelo. Metade deles já caiu. Logo, logo, todos vão cair. Quando todos caírem, o atual Brahma irá morrer e eu também morrerei — por isso não temos casa ou família, nem trabalho ou divertimento que não seja a tarefa de gerar e destruir universos dentro do breve intervalo de tempo em que vivemos.

Nesse momento, os dois visitantes misteriosos se transformaram nos deuses Vishnu e Shiva, se despediram e foram-se embora. Indra sentiu-se totalmente arrasado e se perguntou se aquilo teria sido um sonho. Mas já não sentiu mais nenhum desejo de ampliar o esplendor celestial de seus domínios. Mandou chamar Vishvakarman, cobriu-o de presentes e mandou o artesão descansar. Porém, seu coração não estava feliz, amargando sua humilhação. Resolveu então renunciar a sua posição de deus planetário, se refugiar na floresta e se tornar um eremita em uma vida de ascetismo e meditação.

Mas sua bela rainha Indrani implorou ao conselheiro espiritual do rei, Brihaspati, senhor da Sabedoria Mágica, que afastasse da mente de seu marido essa decisão radical. O hábil Brihaspati falou com Indra sobre as virtudes da vida espiritual, mas falou também das virtudes da vida secular, e deu a cada uma seu valor.

— Você está no trono do universo e representa a virtude e o dever — o dharma — e encarna o espírito divino em seu papel terreno — disse o sábio, acrescentando: — O que acha de representar nesta vida terrena a imanência desse mistério da eternidade?

Indra cedeu e cumpriu o papel que lhe fora destinado no universo transitório do qual era parte, e não mais teve despeito do desfile das formigas — e dos diversos Indras que haviam existido antes, e que tornariam a existir repetidamente por toda a eternidade.


CAMPBELL, Joseph. Mitos de Luz: Metáforas Orientais do eterno. São Paulo: Editora Madras, 2006. pp. 22-25 [Via]