A palavra enéade, de origem grega (em egípcio diz-se pesedjet), refere-se, no contexto da mitologia egípcia, a um agrupamento de nove divindades, geralmente ligadas entre si por laços familiares. Havia várias enéades, das quais a mais importante era a de Heliópolis, como ficou conhecida (em sua nomenclatura grega) a cidade de Iunu, ou Inunu Mehet (“O Pilar”, ou “O Pilar do Norte”), no Baixo Egito. (Com a perda do sentido etimológico inicial de Pesedjet como grupo de nove deuses, a palavra passou a referir-se a quaisquer agrupamentos de divindades; daí se encontrarem enéades compostas por sete deuses, como a de Abido, ou quinze, em Tebas. Houve ainda uma “Pequena Enéade de Heliópolis”, composta pelos deuses Tot, Anúbis, Maat e Cnum.)
Segundo o mito da criação de Heliópolis, no princípio havia as águas do caos, Nun, das quais emergiu uma colina de lodo, Ben-Ben, em cujo cimo encontrava-se Atum, o primeiro deus (e um dos três aspectos do Sol, Rá-Atum-Khépri: Khépri, o Sol nascente; Rá, o Sol no zênite; e Atum, o Sol poente, no qual fica mais presente o atributo da morte/ressurreição).
Ele se masturbou, ou escarrou, ou tossiu (variações sobre o tema da geração dos deuses a partir da própria substância do deus supremo) e expeliu Xu (a atmosfera) e Tefnut (a umidade/chuva):
“Ele tomou seu pênis em sua mão para dessa forma poder obter o prazer do orgasmo. E irmão e irmã assim nasceram, ou seja, Xu e Tefnut.” (Livro das Pirâmides, 527)
Em algumas versões, Atum engole o próprio sêmen e cospe, formando os gêmeos, ou então o ato de cuspir constitui a procriação. Ambas as opções contêm um jogo de palavras: o som tef, primeira sílaba do nome “Tefnut”, é uma palavra que significa “cuspir” ou “expectorar”.
O Livro dos Sarcófagos contêm referências a Xu sendo espirrado (do nariz) por Atum e Tefnut sendo cuspida como saliva. A teologia menfita descreve Atum masturbando-se na própria boca, antes de cuspir o sêmen e assim gerar os gêmeos.
Os dois irmãos, por sua vez, tiveram outro par de filhos: o deus Geb (a Terra) e a deusa Nut (o Céu), que se encontravam unidos, como na tradição sumeriana, num hieròs gamos [casamento sagrado] ininterrupto — e assim engendraram quatro filhos: Osíris, Isís, Set e Néftis. Xu então ergueu o corpo de Nut acima de Geb, de modo que esta se tornou a abóboda do céu.
Osíris era o rei da terra e governava o Egito com justiça e vigor – mas seu irmão, Set, preparou-lhe uma armadilha e conseguiu assassiná-lo. Ísis, sua esposa, uma grande feiticeira, conseguiu ser fecundada por Osíris morto e, depois de sepultá-lo, refugiou-se no delta, onde, oculta entre os papiros, deu à luz Hórus. Este, ao se tornar adulto, fez valer seus direitos perante os demais deuses e investiu contra Set.
Logo no começo do combate, Set conseguiu arrancar-lhe um olho, mas no decorrer da luta Hórus acabou triunfando; recuperou seu olho e o ofereceu a Osíris, que foi ressuscitado como “pessoa espiritual” (ou seja, como alma, o akh) e energia vital responsável, dali por diante, por assegurar a fertilidade vegetal e todas as forças ligadas à reprodução e renovação da vida. “Já por volta de 2750 a.C., Osíris simbolizava as fontes da fecundidade e do crescimento. Em outras palavras, Osíris, o rei assassinado ( = o faraó falecido), garantia a prosperidade do reino regido por seu filho Hórus (representado pelo faraó que acabava de assumir o poder)” (Eliade, p. 103).
[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.