Ptá, “o muito antigo”

Da direita para a esquerda: Rá-Horakhty, o divinizado Ramsés II, Amon-Rá e Ptá no Santo dos Santos de Abu Simbel. Duas vezes ao ano, em 22 de fevereiro e 22 de outubro, os raios do sol penetram no santuário e atingem em cheio os rostos de pedra de Amon, Rá-Horakhti e Ramsés II por 20 minutos. O rosto de Ptá, o deus do mundo inferior, permanece na escuridão.

Da direita para a esquerda: Rá-Horakhty, o divinizado Ramsés II, Amon-Rá e Ptá no Santo dos Santos de Abu Simbel. Duas vezes ao ano, em 22 de fevereiro e 22 de outubro, os raios do sol penetram no santuário e atingem em cheio os rostos de pedra de Amon, Rá-Horakhti e Ramsés II por 20 minutos. O rosto de Ptá, o deus do mundo inferior, permanece nas sombras.

Ptá é o demiurgo de Mênfis, deus dos artesãos (e por isso identificado pelos gregos com Hefesto), ferreiros, carpinteiros, construtores de embarcações, escultores e arquitetos. O próprio nome “Egito” deriva do nome de seu principal centro de culto, Mênfis, em egípcio arcaico Hikuptah, que significa “Casa da Alma de Ptá” – palavra que passou para o grego antigo como Αιγυπτος (Aiguptos), em seguida para o latim como Aegyptus.

Ptá, "o muito antigo"

Ptá, “o muito antigo”

Simultaneamente Nun e Naunet, é proclamado o maior dos deuses, criador de tudo: foi ele “quem fez com que os deuses existissem” (Eliade, p. 95). Atum é apenas o criador do primeiro casal divino e um agente da vontade de Ptá — fruto de seu espírito (o “coração”) e de seu verbo (a “língua”): “Aquele que se manifestou como coração, aquele que se manifestou como língua, sob a aparência de Atum, é Ptá, o muito antigo” (ibidem). Outros de seus epítetos incluem “o de belo rosto”, “o senhor da verdade”, “senhor da justiça”, “o que ouve orações”, “o senhor das cerimônias”, “o senhor da eternidade”.

O deus havia gerado também o ka, ou alma, de cada ser, na medida em que, uma vez criados, os deuses haviam penetrado seus corpos visíveis, entrando “em todas as espécies de plantas, pedras, argila, em toda coisa que cresce no seu relevo (isto é, a Terra) e pelas quais eles podem manifestar-se. É responsável, portanto, pela preservação do mundo e da realeza.

Em geral Ptá é representado como um homem de pele verde, envolto em uma mortalha, com a barba divina e segurando um cetro que combina três símbolos de poder, indicadores dos três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida);  e o pilar djed (estabilidade).

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A vida no limiar e no centro: o povo Haida

O povo Haida tradicionalmente vivia no litoral das atuais Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá. A leste ficava o continente norte-americano; a oeste, 11 mil quilômetros de oceano aberto. Eram, e são, uma cultura de fronteira — de uma zona no limiar entre terra e mar, entre o mundo dos animais e o dos deuses. Viviam em “um mundo mais antigo, em que os deuses são tão inumeráveis, numinosos, fatais e locais quanto as orcas, as pedras e as árvores”. (Robert Bringhurst, “A Story as Sharp as a Knife”, p. 18)

No idioma Haida clássico, eles se consideravam habitantes das Xhaaydla Gwaayaay — as “Ilhas na Fronteira entre os Mundos“. Ao mesmo tempo, porém, viviam — como toda cultura — no centro do mundo.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, na costa oeste do Canadá, ambiente do povo Haida.

Paisagens das Ilhas Queen Charlotte, costa oeste do Canadá, lar do povo Haida, no limiar entre mar e terra. | Clique para ampliar

A história do povo Haida remonta a milhares de anos antes da chegada dos europeus. Os Haida testemunharam mudanças profundas em sua terra e conseguiram sobreviver e prosperar graças aos recursos fornecidos pelo mar e pela floresta, tornando-se uma das civilizações culturalmente mais avançadas da América do Norte.

A cultura Haida teve a peculiaridade de combinar um estilo de vida baseado na caça e na coleta e o estabelecimento de cidades, em geral associada a uma cultura agrícola. Coletavam alimento duas vezes ao dia, na vazante; comiam frutas e outros vegetais colhidos nas florestas, e caçavam a grande variedade de animais da região.

“Mesmo sem agricultura, os Haida viviam como prósperos fazendeiros em cidades de porte considerável. Sua rica tradição artística e literatura oral tem suas raízes na presença constante do mar. Só raramente o maná cai dos céus — mas emerge todos os dias das ondas. Assim, o domínio divino primordial, na cosmologia Haida, não é celestial, é submarino.” (Idem, p. 65)

O ambiente em que os Haida viviam, morriam e contavam suas histórias era complexo. Haida Gwaii (como chamavam sua terra natal) era uma terra de água; água que bordejava suas aldeias praianas, que caía constantemente dos céus, e corria pelas florestas, nutrindo e dando vida a todas as suas criaturas, fossem estas humanas, animais ou míticas. A terra dos Haida é verde, densa e úmida, e seus mitos e arte refletem claramente a paisagem que habitavam.

As aldeias Haida situavam-se sobretudo nas praias, e é nesse espaço intermediário que a vida humana existia (assim como a cultura Haida como um todo existia na zona intermediária entre continente e oceano). As histórias começavam quando o Homem dava o pequeno passo necessário para transpor o limiar de um mundo para outro, que o levava do espaço intersticial do mundo humano para o mundo da floresta, do mar ou do céu, pertencente aos animais ou deuses. “Os seres humanos só se encontram em casa na xhaaydla, a fronteira ou região entremarés, na conjunção dos três. Bastavam algumas remadas ou um poucos passos para dentro do mato para deixar o mundo humano para trás” (idem, p. 155).

De todos os animais e seres espirituais do mundo dos Haida, nenhum era mais significativo para o senso de si desse povo que o Corvo — deus, trickster, criador do mundo, que convida os primeiros humanos a deixar seu esconderijo para desfrutar do novo mundo:

O grande dilúvio, que cobriu a Terra por tanto tempo, tinha por fim recuado e a areia de Haida Gwaii estava seca. O Corvo andava pela areia, de olhos e ouvidos atentos a qualquer visão ou som incomuns que quebrassem a monotonia. Um brilho branco chamou sua atenção e ali, bem aos seus pés, semienterrada na areia, estava uma concha gigante. Olhando mais de perto, ele notou que ela estava repleta de minúsculas criaturas, encolhidas de terror sob sua enorme sombra. Inclinou sua cabeçorra e, usando de toda a sua malandragem, tratou de alternadamente persuadi-los, seduzi-los e coagi-los a sair e brincar naquele mundo novinho em folha. Esses pequeninos eram os Haida originais, os primeiros seres humanos. (Bill Reid, “The Raven and the First Men”)

A sociedade Haida se dividia em duas partes, Águia e Corvo. A Águia representava a sociedade humana central, regular, o caminho da esquerda. Era ela que regia a coleta de alimentos, a transmissão dos julgamentos, os casamentos. O Corvo presidia o cambiante reino do mito, aquele passo que era preciso dar para deixar o mundo humano para trás e adentrar o domínio da arte e dos contos.

Sobre o Corvo, Claude Lévi-Strauss comenta:

O fato de os ameríndios porem um personagem tão insidioso, insolente, libidinoso, e, muitas vezes, grotesco, com um pendor para a escatologia, no ápice de seu panteão, talvez surpreenda alguns. Mas o pensamento indígena situa o Corvo no limiar entre duas eras (…). Já não se pode fazer qualquer coisa. O trickster descobre isso — muitas vezes ao custo da própria integridade. (…) O Corvo é ao mesmo tempo o maior rebelde e o legislador supremo. (Bringhurst e Reid, “The Raven Steals the Light”, do prefácio)

O trickster é capaz de cruzar fronteiras com grande facilidade, e o Corvo consegue navegar com facilidade o espaço liminar dos Haida, abrindo caminho para que os Haida façam o mesmo, como exige o contexto onde vivem. O Corvo “sabe como escapar por entre os poros, e como bloqueá-los; confunde as polaridades voltando sobre os próprios passos e invertendo seu próprio rumo; cobre seus rastros e torce seus significados; e é politrópico, mudando de pele ou de forma conforme cada situação exige.”(Lewis Hyde, “Trickster Makes this World”, p. 62)

Baseado em parte em Allison Steiger, aqui