Da tolerância ao Outro à celebração das diferenças: diálogo e alteridade em Direitos Humanos e Religião (parte 1 de 4)

Ziraldo | Fonte: Cartilha sobre Direitos Humanos, disponível para download aqui

Ziraldo | Fonte: Cartilha sobre Direitos Humanos, disponível para download aqui

Por Cristiana Serra

Ontem, 19 de setembro, tive o prazer de participar, a convite do querido Roberto Teixeira Corrêa, da Semana da CRE (setor de Cultura Religiosa do Departamento de Teologia) da PUC-Rio. Como este ano o evento teve por tema “Religiões e Direitos Humanos: ‘A Paz é fruto da Justiça’ (Is 32,17)”, abordei, na minha palestra (na verdade, três aulas para diferentes grupos, compostos por várias turmas, que lotaram o Salão da Pastoral), a questão da alteridade. Foi uma experiência riquíssima para mim, sobretudo pela troca com alunos e professores, aos quais sou profundamente grata pela acolhida calorosa.

A matéria-prima da minha clínica, como psicóloga, são histórias — e muitas vezes eu sinto que minha tarefa principal é ajudar meus clientes a resgatar, (re)encontrar, (re)conhecer, ressignificar as histórias que el@s contam a seu próprio respeito. Partindo desse ponto de vista peculiar que meu trabalho me dá, portanto, vamos começar exatamente por aí: por histórias. Ou melhor, por uma história:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU começa com as seguintes palavras: “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Por isso, sublinho estas duas palavras — dignidade e igualdade — para começarmos nossa reflexão por aqui também.

Certas palavras podem ter muitos sentidos e dar margem a muitas interpretações. É como se pudessem contar muitas histórias diferentes. “Igualdade”, por exemplo, conforme visto nas imagens acima e abaixo.

Igualdade vs. Justiça

Autor desconhecido

Como diz a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, em sua TED Talk sobre “O perigo de uma história única”, o modo como as histórias são contadas, quem as conta, quando e quantas são contadas, tudo isso depende do poder. “Poder”, diz ela, é a capacidade não só de contar a história de outra pessoa, mas de fazer desta sua história definitiva. Nesse sentido, uma das maiores violências que podemos cometer contra outro ser humano ou povo é superficializar suas histórias, reduzindo-as a uma única e negligenciando as muitas outras que também os constituem. A “história única” cria estereótipos — e o problema dos estereótipos não é que sejam falsos, mas o fato de serem incompletos; fazem com que uma história torne-se a única história — e priva as pessoas justamente de sua dignidade; dificulta o reconhecimento da nossa humanidade comum; enfatiza nossas diferenças, em vez de nossas semelhanças; e impede que nos identifiquemos com o Outro. Daí a importância de abrirmos canais que possibilitem a instauração de um equilíbrio de histórias, a fim de que outras narrativas também possam se fazer ouvir. Afinal, as histórias podem ser usadas para expropriar e malignificar, mas também podem ajudar a capacitar e humanizar; podem destruir a dignidade de um povo, mas também reparar essa dignidade perdida.

Mas quem é esse Outro que nos causa tanto estranhamento e temos tanta dificuldade em reconhecer? A poetisa e ativista palestina Rafeef Ziadah, em sua poesia “We teach life, Sir” (“Nós ensinamos a vida, senhor”), toca justamente nesse ponto — nas feridas causadas quando se priva alguém de sua voz e se impinge à pessoa uma versão simplista e reduzida de sua própria história.

Não se trata, aqui, de tomar o partido de palestinos ou israelenses, árabes ou judeus. Trata-se, muito pelo contrário, de ressaltar a imperiosa necessidade de mais histórias para humanizar os diferentes lados, e possibilitar que se toquem em sua humanidade comum — como se buscou fazer no movimento Jews & Arabs Refuse To Be Enemies, que, para se contrapor à história única de ódio entre esses dois povos, conta histórias de pessoas, judeus ou árabes, que se recusam a ser inimigos entre si.

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