O Sol Nascente, representado por Khepri sob a forma de um escaravelho com as asas de Ísis, empurra o disco solar.
Na ausência de textos canônicos e dispondo tão-somente de fragmentos e referências indiretas, quem se propõe a estudar a religião e a mitologia egípcias pode ficar desnorteado diante da miríade de variações, em geral contraditórias e não raro sincréticas, que se desenvolveram ao longo dos milênios. Não se pode perder de vista, contudo, a rica perspectiva simbólica que coloria a visão religiosa de mundo dos egípcios, erguida sobre a base cambiante e paradoxal de uma sociedade que atravessou os séculos na tensão entre a centralização do poder na figura do rei-deus e o “imobilismo” associado à perfeição da ma’at, a ordem cósmica, de um lado, e, do outro, a pulverização do poder entre os vários centros políticos e o reconhecimento da desordem como presença indestrutível, pois que virtual, no seio dessa própria ordem.
Assim, em vez de se conjugarem em narrativas extensas e fixas, os relatos míticos egípcios mantiveram uma grande flexibilidade e permaneceram não-dogmáticos; encontramos, assim, uma multiplicidade de cosmogonias e descrições da movimentação do sol, algumas completamente distintas entre si. Nesse contexto, também as relações entre os deuses mostravam-se fluidas ao extremo, o que permitia que a deusa Hathor, por exemplo, desempenhasse alternadamente os papeis de consorte, mãe ou filha do deus-sol Rá. Era recorrente também o sincretismo ou conexão entre divindades diferentes numa única entidade; assim, o Criador Atum, por exemplo, se combinaria a Rá e daria origem a Rá-Atum.
Uma explicação para as inconsistências nos mitos egípcios é que as ideias iriam sendo elaboradas ao longo do tempo e de uma região para outra. Para os egiptologistas do começo do século XX, a causa de tais variações seria eminentemente política. Assim, os cultos locais das diferentes divindades teriam desenvolvido teologias em torno de seus próprios patronos — e, à medida que os vários centros foram se sucedendo no poder, seus respectivos aparatos míticos ascendiam junto à preponderância nacional. Desde o trabalho de Henri Frankfort nos anos 1940, porém, passou-se a reconhecer o vigor simbólico dos mitos egípcios e o fato de que as aparentes contradições são, na verdade, expressão da riqueza e multiplicidade de abordagens por meio das quais os egípcios expressavam sua vivência do sagrado. Por mais que de fato os meandros da política afetassem as crenças egípcias, as concepções engendradas a partir da elaboração das tensões sociais, políticas e religiosas refletem também significados mais profundos.
O ba, representado como uma ave com cabeça humana
Para os egípcios, os deuses se manifestavam sob as mais variadas formas, de acordo com sua complexa concepção da alma humana, composta de várias partes – e os espíritos dos deuses eram compostos de muitos desses mesmos elementos. Assim, o ba era o componente da alma humana ou divina capaz de afetar o mundo ao seu redor. Como toda manifestação visível do poder de um deus podia ser considerada seu ba, o sol era chamado de o ba de Rá. Toda representação de uma divindade era considerada um ka, outro componente do seu ser, que servia de vaso ou recipiente para o ba daquele deus habitar. Acreditava-se, pois, que tanto as imagens de culto em torno das quais giravam os rituais nos templos quanto os animais sagrados que representavam certas divindades abrigavam bas divinos dessa maneira. Hathor, por exemplo, podia apresentar-se como vaca, cobra, leoa ou mulher com os chifres ou orelhas bovinas com que originalmente se representava outra deusa-vaca, Bat, cujo culto remontava aos tempos pré-dinásticos do Alto Egito.
Com efeito, aos deuses podiam-se atribuir muitos bas e kas, aos quais por vezes se davam nomes representando diferentes aspectos da natureza do deus. Para os egípcios, tudo o que existia era um dos kas de Atum, o deus criador – que originalmente continha todas as coisas dentro de si mesmo. Do mesmo modo, uma divindade podia ser considerada o ba de outra, isto é, a primeira seria uma manifestação do poder da segunda. O mesmo valia para diferentes partes do corpo divino, capazes de atuar como entidades distintas, como o Olho de Ra e a Mão de Atum, ambos personificados como deuses.
Assim como um deus podia ser entendido como o ba de outro, duas ou mais divindades podiam unir-se em um deus de nome e iconografia combinados. Divindades de importância nacional davam origem a manifestações locais de si mesmas, às vezes absorvendo características de deuses regionais mais antigos, ou deuses locais eram relacionados a outros maiores, e divindades com funções análogas se associavam. Assim, durante o Império Antigo, Hórus absorveu vários deuses-falcão locais, como Khenty-irty e Khenty-Khety. Analogamente, Rá ligou-se a Amon, formando Amon-Rá; com Hórus em seu aspecto relacionado à energia solar, formando Rá-Horakhty; e com um sem-número de divindades solares, como Horemakhet-Khepri-Rá-Atum. Mesmo divindades estrangeiras chegaram a assumir formas sincréticas com as nativas. Assim, com o passar do tempo foram surgindo combinações cada vez mais complexas, e as representações de alguns deuses só podiam ser distinguidas das de outros se fossem designados por escrito, como no caso de Ísis e Hathor – que, devido à sua ligação estreita, podiam ambas ostentar os chifres de vaca, que, a princípio, eram prerrogativa de Hathor.
Assim, reconhecia-se a sobreposição das atribuições dos deuses envolvidos, que tinham sua esfera de influência ampliada. Mas os deuses se combinavam entre si com a mesma facilidade com que se dividiam; as combinações sincréticas não eram permanentes, e um deus envolvido em uma determinada combinação continuava aparecendo em separado e constituindo novas associações, com outras divindades. Do mesmo modo, as manifestações dos deuses também variavam segundo seus papéis; Hórus podia ser um poderoso deus do céu ou uma criança vulnerável – formas que por vezes eram tratadas como divindades independentes. Por outro lado, divindades com uma conexão mais estreita às vezes se fundiam, como ilustra bem o caso de Mut, conforme descrito aqui.
Para determinar a identidade de um deus, certas características de imagens divinas são mais úteis do que outros na iconografia. A cabeça é particularmente significativa: em imagens híbridas, representa a forma original do que está sendo retratado. Assim, “uma deusa com cabeça de leão é uma deusa-leoa em forma humana, ao passo que uma esfinge real, ao contrário, é um homem que assumiu a forma de um leão” (fonte). Do mesmo modo, os adornos de cabeça são também significativos. Em contrapartida, os objetos levados nas mãos tendem a ser genéricos; divindades masculinas portam cetros was, as deusas levam hastes de papiro, e ambos os sexos ostentam ankhs, que representam a palavra egípcia para “vida”, simbolizando seu poder de conferir vida.
Deuses egípcios mumiformes: da esquerda para a direita, Khonsu, Osíris, Ptá e Min
Crianças divinas são retratadas nuas (e eventualmente com o símbolo da infância – a cabeça raspada, deixando apenas uma madeixa na lateral), assim como deuses adultos cujos poderes procriativos são enfatizados. Certas divindades masculinas ganham barrigas e seios pesados, possíveis indicadores de androginia ou prosperidade e abundância. A pele da maioria dos deuses era vermelha e a das deusas, amarela – mesmas cores usadas para retratar homens e mulheres comuns; todavia, alguns ganhavam cores simbólicas, como o deus Hapi, barrigudo e de pele azul, que aludia às cheias do Nilo e à fertilidade e nutrição que proporcionava, e a pele verde de Osíris, que se referia à sua capacidade de regeneração da vida. Certos deuses, como Khonsu, Osíris, Ptá e Min, têm uma aparência “mumiforme”, com as pernas unidas e os braços, agarrados ao corpo, imperceptíveis. Como, porém, os exemplos mais antigos desse tipo de representação datam de uma época anterior à prática da mumificação com o envolvimento em tiras de tecido, essa forma talvez remonte às representações divinas mais primordiais, retratadas sem os membros.