Tensões religiosas entre Rá e Osíris (2): crise, ruptura da ordem cósmica, desespero e elaboração

Por Cristiana Serra | Continuação deste post

A visão de mundo egípcia no Antigo Império tinha o faraó, por um lado, como encarnação e mantenedor da maat (a ordem cósmica fundada pelos deuses) e, por outro, como homem exemplar e único destinado a gozar da imortalidade solar — crença fundamentada no culto ao sol, Rá, de quem o rei era ao mesmo tempo filho e manifestação (ba), e no culto aos antepassados mortos, expresso no mito de Osíris e Hórus, seu filho e sucessor, patrono do faraó. Essa dualidade entre o princípio solar, representado por Rá, e o ctônico, representado por Osíris, permaneceu entranhada no espírito egípcio e encontrou, em todos os níveis de sua sociedade e cultura, uma ampla variedade de expressões. Aparece, por exemplo, na intransponível tensão entre o Alto e o Baixo Egitos e no fato de que o Egito será, sempre, um reino composto por dois sub-reinos unidos, sem nunca chegar a uma integração inextrincável, como revelam a dupla coroa egípcia, chamada de “As Duas Potências”, e, mais significativamente em uma cultura em que o sincretismo é uma vocação natural e o processo de identificação e desidentificação entre os deuses se faz e desfaz com fluidez e espontaneidade, o monarca será protegido por duas divindades mantidas teimosamente separadas — Wadjet, a serpente de bote armado e protetora do Baixo Egito, e Nekhbet, a deusa-abutre padroeira do Alto Egito. Em nenhuma imagem, porém, o paradoxo inerente à cultura egípcia desponta com mais clareza do que na não-destruição de Set, que deve ser suplantado a cada micro e macrociclo temporal: diariamente, a cada (re)nascer do sol; anualmente, a cada novo ciclo das estações de cheia, recuada das águas e seca; e na sucessão dos faraós. A cada ciclo temporal se repete a vitória de Hórus sobre Set, a vitória da maat, a ordem estabelecida do cosmos, sobre as forças do caos; ou seja, a recriação do mundo ao emergir do caos das águas primordiais, materializada ao mesmo tempo pela emergência diária do Sol do Duat, o mundo inferior, após sua vitória sobre a serpente Apófis, o arquidemônio, e pela sucessão das cheias do Nilo e a refertilização da terra negra das margens, propiciada por Osíris e sinal de sua vitória sobre Set e a terra vermelha do deserto. Set é vencido, mas jamais destruído, por encarnar, em última instância, a não-ordem (i.e., o caos) cuja existência virtual é inerente à da própria ordem; ontologicamente, a impossibilidade de eliminá-lo é a impossibilidade de extirpar do Ser o não-Ser que é sua consequência lógica.

Continuar lendo

A viagem celeste do faraó

Câmara mortuária de Unas: a decoração interna das pirâmides era composta basicamente de textos. Note-se, aqui, a decoração de estrelas no teto da câmara que abrigava o sarcófago do Rei Unas (último faraó da V Dinastia), em sua pirâmide em Saccara

Câmara mortuária de Unas: a decoração interna das pirâmides era composta basicamente de textos. Notem-se, aqui, as estrelas no teto da câmara que abrigava o sarcófago do Rei Unas (último faraó da V Dinastia), em sua pirâmide em Saccara, revelando o caráter eminentemente celeste de sua viagem post mortem

O Livro das Pirâmides, uma compilação de fórmulas mágicas e rituais escritas nas paredes das galerias e câmaras das pirâmides (i.e., no Antigo Império, até a VI Dinastia — c. 2345-2181 a.C.) a fim de auxiliar o faraó após a morte e expressam, portanto, as crenças relativas ao destino post mortem do rei.

Esses escritos soltos deixam transparecer uma doutrina ainda marcada por contradições e imperfeitamente sistematizada, na tensão entre Rá e Osíris. “A maioria dos enunciados repete com ênfase que o faraó, filho de Atum ( = Rá), gerado pelo grande deus antes da criação do mundo, não pode morrer; mas outros textos garantem ao rei que seu corpo não sofrerá decomposição. Trata-se de duas ideologias religiosas distintas, ainda insuficientemente integradas” (Eliade, p. 100). Embora muitos textos revelem a expectativa de restauração corporal, em uma clara alusão ao complexo mítico-ritual oririano, porém, a maioria trata da viagem celeste do faraó ao encontro de Rá, seu pai.

Continuar lendo

Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

Continuar lendo

O shenu, envoltório da proteção eterna

A enorme quantidade de shenus ostentada neste templo erguido pela rainha-faraó Hatshepsut, que teria seus cartuchos e seu rosto apagados dos monumentos e registros por seu sucessor, Tutmés III, parece ser uma tentativa de proteção e um bom reflexo das tensões entre a faraó e seu sucessor.

A enorme quantidade de shenus ostentada neste templo erguido pela rainha-faraó Hatshepsut, que teria seus cartuchos e seu rosto apagados dos monumentos e registros por seu sucessor, Tutmés III, parece ser uma tentativa de proteção e um reflexo das tensões entre a faraó e seu sucessor.

O shenu, ou “anel shen” [em inglês, shen ring], é um círculo com uma linha tangente a ele, representado nos hieróglifos como uma corda com um laço estilizado. Shen significa, em egípcio antigo, “cercar”, “rodear”, “envolver”, de modo que o shenu representa proteção eterna.  Quando esticado para conter outros objetos, entendia-se que estes estavam eternamente protegidos. Quando contém o nome do faraó o símbolo, é o “cartucho” (no sentido de “invólucro”, “envoltório”) que mantém fechado e protegido o nome real.

Costuma aparecer ligado a vários tipos de cetros, símbolos de autoridade ou poder, representando a eternidade desse poder; com frequência aparece também nas garras do falcão (Hórus) ou do abutre (Mut), que, estendem suas asas sobre a cena apresentada.

Perspectiva simbólica, sincretismo e o espírito dos deuses na iconografia egípcia

O Sol Nascente, representado por Khepri sob a forma de um escaravelho com as asas de Ísis, empurra o disco solar.

O Sol Nascente, representado por Khepri sob a forma de um escaravelho com as asas de Ísis, empurra o disco solar.

Na ausência de textos canônicos e dispondo tão-somente de fragmentos e referências indiretas, quem se propõe a estudar a religião e a mitologia egípcias pode ficar desnorteado diante da miríade de variações, em geral contraditórias e não raro sincréticas, que se desenvolveram ao longo dos milênios. Não se pode perder de vista, contudo, a rica perspectiva simbólica que coloria a visão religiosa de mundo dos egípcios, erguida sobre a base cambiante e paradoxal de uma sociedade que atravessou os séculos na tensão entre a centralização do poder na figura do rei-deus e o “imobilismo” associado à perfeição da ma’at, a ordem cósmica, de um lado, e, do outro, a pulverização do poder entre os vários centros políticos e o reconhecimento da desordem como presença indestrutível, pois que virtual, no seio dessa própria ordem.

Assim, em vez de se conjugarem em narrativas extensas e fixas, os relatos míticos egípcios mantiveram uma grande flexibilidade e permaneceram não-dogmáticos; encontramos, assim, uma multiplicidade de cosmogonias e descrições da movimentação do sol, algumas completamente distintas entre si. Nesse contexto, também as relações entre os deuses mostravam-se fluidas ao extremo, o que permitia que a deusa Hathor, por exemplo, desempenhasse alternadamente os papeis de consorte, mãe ou filha do deus-sol Rá. Era recorrente também o sincretismo ou conexão entre divindades diferentes numa única entidade; assim, o Criador Atum, por exemplo, se combinaria a Rá e daria origem a Rá-Atum.

Uma explicação para as inconsistências nos mitos egípcios é que as ideias iriam sendo elaboradas ao longo do tempo e de uma região para outra. Para os egiptologistas do começo do século XX, a causa de tais variações seria eminentemente política. Assim, os cultos locais das diferentes divindades teriam desenvolvido teologias em torno de seus próprios patronos — e, à medida que os vários centros foram se sucedendo no poder, seus respectivos aparatos míticos ascendiam junto à preponderância nacional. Desde o trabalho de Henri Frankfort nos anos 1940, porém, passou-se a reconhecer o vigor simbólico dos mitos egípcios e o fato de que as aparentes contradições são, na verdade, expressão da riqueza e multiplicidade de abordagens por meio das quais os egípcios expressavam sua vivência do sagrado. Por mais que de fato os meandros da política afetassem as crenças egípcias, as concepções engendradas a partir da elaboração das tensões sociais, políticas e religiosas refletem também significados mais profundos.

O ba, representado como uma ave com cabeça humana

O ba, representado como uma ave com cabeça humana

Para os egípcios, os deuses se manifestavam sob as mais variadas formas, de acordo com sua complexa concepção da alma humana, composta de várias partes – e os espíritos dos deuses eram compostos de muitos desses mesmos elementos. Assim, o ba era o componente da alma humana ou divina capaz de afetar o mundo ao seu redor. Como toda manifestação visível do poder de um deus podia ser considerada seu ba, o sol era chamado de o ba de Rá. Toda representação de uma divindade era considerada um ka, outro componente do seu ser, que servia de vaso ou recipiente para o ba daquele deus habitar. Acreditava-se, pois, que tanto as imagens de culto em torno das quais giravam os rituais nos templos quanto os animais sagrados que representavam certas divindades abrigavam bas divinos dessa maneira. Hathor, por exemplo, podia apresentar-se como vaca, cobra, leoa ou mulher com os chifres ou orelhas bovinas com que originalmente se representava outra deusa-vaca, Bat, cujo culto remontava aos tempos pré-dinásticos do Alto Egito.

Com efeito, aos deuses podiam-se atribuir muitos bas e kas, aos quais por vezes se davam nomes representando diferentes aspectos da natureza do deus. Para os egípcios, tudo o que existia era um dos kas de Atum, o deus criador – que originalmente continha todas as coisas dentro de si mesmo. Do mesmo modo, uma divindade podia ser considerada o ba de outra, isto é, a primeira seria uma manifestação do poder da segunda. O mesmo valia para diferentes partes do corpo divino, capazes de atuar como entidades distintas, como o Olho de Ra e a Mão de Atum, ambos personificados como deuses.

Assim como um deus podia ser entendido como o ba de outro, duas ou mais divindades podiam unir-se em um deus de nome e iconografia combinados. Divindades de importância nacional davam origem a manifestações locais de si mesmas, às vezes absorvendo características de deuses regionais mais antigos, ou deuses locais eram relacionados a outros maiores, e divindades com funções análogas se associavam. Assim, durante o Império Antigo, Hórus absorveu vários deuses-falcão locais, como Khenty-irty e Khenty-Khety.  Analogamente, Rá ligou-se a Amon, formando Amon-Rá; com Hórus em seu aspecto relacionado à energia solar, formando Rá-Horakhty; e com um sem-número de divindades solares, como Horemakhet-Khepri-Rá-Atum. Mesmo divindades estrangeiras chegaram a assumir formas sincréticas com as nativas. Assim, com o passar do tempo foram surgindo combinações cada vez mais complexas, e as representações de alguns deuses só podiam ser distinguidas das de outros se fossem designados por escrito, como no caso de Ísis e Hathor – que, devido à sua ligação estreita, podiam ambas ostentar os chifres de vaca, que, a princípio, eram prerrogativa de Hathor.

Assim, reconhecia-se a sobreposição das atribuições dos deuses envolvidos, que tinham sua esfera de influência ampliada. Mas os deuses se combinavam entre si com a mesma facilidade com que se dividiam; as combinações sincréticas não eram permanentes, e um deus envolvido em uma determinada combinação continuava aparecendo em separado e constituindo novas associações, com outras divindades. Do mesmo modo, as manifestações dos deuses também variavam segundo seus papéis; Hórus podia ser um poderoso deus do céu ou uma criança vulnerável – formas que por vezes eram tratadas como divindades independentes. Por outro lado, divindades com uma conexão mais estreita às vezes se fundiam, como ilustra bem o caso de Mut, conforme descrito aqui.

Para determinar a identidade de um deus, certas características de imagens divinas são mais úteis do que outros na iconografia. A cabeça é particularmente significativa: em imagens híbridas, representa a forma original do que está sendo retratado. Assim, “uma deusa com cabeça de leão é uma deusa-leoa em forma humana, ao passo que uma esfinge real, ao contrário, é um homem que assumiu a forma de um leão” (fonte).  Do mesmo modo, os adornos de cabeça são também significativos. Em contrapartida, os objetos levados nas mãos tendem a ser genéricos; divindades masculinas portam cetros was, as deusas levam hastes de papiro, e ambos os sexos ostentam ankhs, que representam a palavra egípcia para “vida”, simbolizando seu poder de conferir vida.

Deuses egípcios mumiformes: da esquerda para a direita, Khonsu, Osíris,  Ptá e Min

Deuses egípcios mumiformes: da esquerda para a direita, Khonsu, Osíris, Ptá e Min

Crianças divinas são retratadas nuas (e eventualmente com o símbolo da infância – a cabeça raspada, deixando apenas uma madeixa na lateral), assim como deuses adultos cujos poderes procriativos são enfatizados. Certas divindades masculinas ganham barrigas e seios pesados​​, possíveis indicadores de androginia ou prosperidade e abundância. A pele da maioria dos deuses era vermelha e a das deusas, amarela – mesmas cores usadas para retratar homens e mulheres comuns; todavia, alguns ganhavam cores simbólicas, como o deus Hapi, barrigudo e de pele azul, que aludia às cheias do Nilo e à fertilidade e nutrição que proporcionava, e a pele verde de Osíris, que se referia à sua capacidade de regeneração da vida. Certos deuses, como Khonsu, Osíris, Ptá e Min, têm uma aparência “mumiforme”, com as pernas unidas e os braços, agarrados ao corpo, imperceptíveis. Como, porém, os exemplos mais antigos desse tipo de representação datam de uma época anterior à prática da mumificação com o envolvimento em tiras de tecido, essa forma talvez remonte às representações divinas mais primordiais, retratadas sem os membros.

O milagre inesquecível da “Primeira Vez”: a instauração da ma’at e o “imobilismo” egípcio

"A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo."

“A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.” | Via

Se, nas sociedades tradicionais, a fixidez das formas hieráticas e a repetição das gestas levadas a cabo nos primórdios “são a consequência lógica de uma teologia que considerava a ordem cósmica uma obra essencialmente divina, e via em toda mudança o risco de uma regressão ao caos e, por conseguinte, o triunfo das forças demoníacas” [1, p. 93], no Egito essa lógica “conservadora” foi levada ao paroxismo — e a regularidade das cheias do Nilo e a fartura por elas proporcionada certamente contribuíram para reforçar o senso de harmonia e estabilidade da cultura egípcia. Assim, o que os egiptólogos denominam de “imobilismo” traduz o empenho dos egípcios em manter intacta a Criação inicial, perfeita sob todos os aspectos — cosmológico, religioso, social e ético.

Esse tempo das origens, intitulado pelos egípcios de Tep zepi, a “Primeira Vez”, estendeu-se do aparecimento do deus criador sobre as águas primordiais à entronização de Hórus; “tudo aquilo que existe, desde fenômenos naturais até realidades religiosas e culturais (plantas dos templos, calendário, escrita, rituais, insígnias reais etc.) deve sua validade e justificativa ao fato de ter sido criado no decorrer da época inicial” [ibidem]. A cosmogonia — a fundação do Mundo — é o acontecimento mais importante por representar a única mudança real; a partir daí, as únicas outras mudanças significativas são aquelas referentes aos ritmos da vida cósmica, isto é, os movimentos dos astros, a sucessão das estações, as fases da Lua, o ritmo da vegetação, o fluxo e refluxo do Nilo.

Ora, a “Primeira Vez” (e a ordem nela, e por meio dela, instaurada) caracterizou-se pela perfeição absoluta, “antes que a raiva, ou o barulho, a luta ou a desordem fizessem seu aparecimento” [apud 1, p. 93], quando não havia morte nem doença — e foi a partir da intervenção do mal que surgiu a desordem, pondo fim à idade de ouro. Assim, “é justamente essa periodicidade dos ritmos cósmicos que constitui a perfeição instituída nos tempos da ‘Primeira Vez’. A desordem implica uma mudança inútil e, por conseguinte, nociva no ciclo exemplar das mudanças perfeitamente ordenadas” [1, p. 97]. E, por constituir a soma dos modelos a serem imitados, cabia aos homens reatualizar continuamente, por meio dos ritos, esse tempo forte das origens, renovando assim a ma’at (personificada pela deusa Maat) — termo que se traduz por “justiça”, “verdade”, “ordem”, “honestidade”, mas cujo significado geral é “a boa ordem” e, por conseguinte, “o direito”, “a justiça” —, a ordem cósmica fundamental que emergiu no momento da Criação original e refletia, portanto, a perfeição da idade de ouro. “Assim, segundo um dos primeiros textos religiosos, o Criador surgiu o monte de terra primordial somente ‘depois que ele havia substituído o Caos por ma’at.’ O faraó era responsável pela administração da ma’at de acordo com seu divino julgamento; segundo aquele mesmo texto: ‘O Céu [Nut] está satisfeito e a Terra [Geb] se alegra quando sabem que o rei Pepi II substituiu a desordem por ma’at’” [2, p. 71]. Desse modo, se faltava à religião egípcia um livro sagrado ou um conjunto de mandamentos, ela por outro lado dispunha da ma’at como princípio unificador.

De fato, se a ordem social representava um aspecto da ordem cósmica, entende-se que, ao lado da fundação do Mundo a partir do caos primordial, o outro momento decisivo da prodigiosa “Primeira Vez” tivesse sido justamente o advento do faraó. Com efeito, a fundação do Estado unificado equivaleu a uma cosmogonia; o faraó, como deus encarnado, “instaurou um mundo novo, uma civilização infinitamente mais complexa e superior à das aldeias neolíticas. O essencial era assegurar a permanência dessa obra efetuada de acordo com um modelo divino; em outras palavras, evitar as crises suscetíveis de abalar os alicerces do novo mundo. A divindade do faraó constituía a melhor garantia disso. Como o faraó era imortal, sua morte significava somente sua transladação ao Céu. Estava assegurada a continuidade de um deus encarnado para outro deus encarnado e, consequentemente, a continuidade da ordem cósmica e social” [1, p. 93].

Para os egípcios, pois, o Criador foi o primeiro rei — e assim, no Livro dos Mortos, o deus proclama: “Eu sou Atum, quando estava sozinho em Nun [o oceano primordial]. Eu sou Rá na sua primeira manifestação, quando ele começou a governar a sua Criação” [apud 1, p. 97, grifo nosso] — e transmitiu essa prerrogativa a seu filho e sucessor, o primeiro faraó, consagrando a realeza como instituição divina. Conforme vimos no exemplo acima, os gestos do faraó são descritos nos mesmos termos com que se apresentam os gestos de Rá ou certas epifanias solares. Assim, “a criação de Rá é resumida às vezes com palavras precisas: ‘Ele colocou ordem [ma’at] no lugar do caos’. E é nos mesmos termos que se fala de Tutancâmon quando ele restaurou a ordem (…): ‘Ele pôs a ma’at no lugar da mentira (da desordem)’. Da mesma forma, o verbo khay, ‘brilhar’, é empregado indiferentemente para descrever a emergência do Sol no instante da Criação ou em cada aurora, e o aparecimento do faraó na cerimônia da coroação, nas festividades, ou no conselho privado”. [1, p. 97].

“Por constituir o próprio fundamento do cosmo e da vida, a ma’at pode ser conhecida pelos indivíduos isoladamente. Em textos de origens e épocas diferentes, encontram-se declarações como as seguintes: ‘Incita teu coração a conhecer a ma’at!’; ‘Faço com que conheças a coisa da ma’at no teu coração; oxalá possas fazer o que é correto para ti!’; ou: ‘Eu era um homem que amava a ma’at e odiava o pecado, pois sabia que [o pecado] é como que uma abominação a Deus. Com efeito, é Deus que concede o conhecimento necessário. Um príncipe é designado como ‘alguém que conhece a verdade [ma’at] e que é instruído por Deus’. O autor de uma oração a Rá exclama: ‘Oxalá possas introduzir a ma’at no meu coração!’.” [Ibidem]

Com o passar dos séculos, difundiu-se na cultura egípcia a crença de que, diante da deusa Maat, de nada valeriam as riquezas, nem a posição social do falecido; apenas seus atos seriam levados em conta. Com efeito, a existência humana veio a ser compreendida pelos egípcios como um mero segmento de uma jornada eterna presidida e orquestrada por forças sobrenaturais que assumiam a forma das muitas divindades do panteão egípcio. A vida terrena do indivíduo não seria, porém, um mero prólogo de algo maior, mas parte da viagem como um todo. O conceito egípcio de vida após a morte era de um espelhamento da vida na terra (especificamente, a vida no Egito), e quem quisesse desfrutar o resto de sua jornada eterna teria de viver bem esta vida.

Tal crença de que a sorte dos mortos dependia de sua conduta moral enquanto vivos foi uma elaboração original do espírito religioso egípcio. Mil anos mais tarde, essa idéia não fora ainda adotada por nenhum outro povo conhecido. Na Mesopotâmia, por exemplo, ou entre os hebreus, bons e maus enfrentavam, no além, as mesmas vicissitudes, indiscriminadamente. A mitologia egípcia, assim, vai girar em torno do reinado de Rá sobre a terra, de um lado, e dos embates entre os deuses Osíris, Ísis e Hórus e o destruidor Set, in illo tempore; e de seu reflexo no trajeto diário de Rá pela abóbada celeste e em sua jornada noturna através de sua contraparte no Mundo Inferior, o Duat. A temática religiosa central será, para o egípcio, o conflito entre os paladinos da ma’at e as forças da desordem; a importância do faraó para a manutenção da ma’at e a contínua morte e regeneração dos deuses como modelo para a regeneração também da vida humana.


[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.
[2] Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. Pp. 55-86.

Fontes e referências sobre religião e mitologia do Antigo Egito

Este detalhe, extraído doPapiro de Hunefer (c. 1275 a.C.), mostra o coração do escriba  Hunefer sendo pesado, na balança da deusa Maat, contra a pena da verdade, por Anúbis, o deus de cabeça de chacal. O deus Tot, de cabeça de íbis, escriba dos deuses, registra o resultado. Se seu coração tiver exatamente o mesmo peso da pena, Hunefer terá permissão para passar para a vida além-morte. Se não, será comido pelo quimérico Ammit, misto de crocodilo, leão e hipopótamo.

Este detalhe, extraído do Papiro de Hunefer (c. 1275 a.C.), mostra o coração do escriba Hunefer sendo pesado, na balança da deusa Maat, contra a pena da verdade, por Anúbis, o deus de cabeça de chacal. O deus Tot, de cabeça de íbis, escriba dos deuses, registra o resultado. Se seu coração tiver exatamente o mesmo peso da pena, Hunefer terá permissão para passar para a vida além-morte. Se não, será comido pelo quimérico Ammit, misto de crocodilo, leão e hipopótamo.

A religião egípcia não contava com um livro sagrado nem um conjunto de mandamentos, e o que dela sabemos nos é revelado por fragmentos e alusões indiretas recolhidos de fontes que raramente contêm relatos completos de mitos, tais como textos literários (em histórias que iam do humor à alegoria), registros dos feitos dos faraós e materiais religiosos como hinos, textos e fórmulas rituais e funerários e decoração de templos. Dessas fontes, as principais são:

1. “Livro das Pirâmides”: compilação de fórmulas mágicas e hinos escritos nas paredes dos corredores e câmaras funerárias das pirâmides de Saccara (dos faraós Unas, Teti, Pepi I, Merenré e Pepi II), a fim de proteger o faraó e garantir sua sobrevivência no Além — na época, a possibilidade de uma vida depois da morte era acessível apenas aos reis. Embora tenham sido escritos no tempo da V e VI Dinastias (~2350-2175 a.C.), sua composição provavelmente data de muito antes, ~3000 a.C., o que faz deles os mais antigos textos sacros conhecidos. [Tradução inglesa aqui]

2. “Livro dos Sarcófagos”: A partir da VII Dinastia houve uma “democratização” da possibilidade de ascender a uma vida no Além, que deixou de ser reservada apenas ao soberano e estendeu-se também aos nobres e altos funcionários, primeiro, para progressivamente generalizar-se para a população como um todo. A partir do Primeiro Período Intermediário, e sobretudo durante o Império Médio, os textos usados pelos reis foram modificados; ao mesmo tempo, surgiram novos textos, ainda com a função de proteger o defunto no Além e prover as suas necessidades. Os textos passaram a ser escritos na madeira do interior dos sarcófagos, daí o nome dessa compilação — que, contudo, inclui também inscrições realizadas em vasos canópicos, estelas, paredes dos túmulos e papiros e compreende mais de mil fórmulas conhecidas.

"Seu nome original em egípcio, transliterado rw nw prt m hrw, significava 'Livro de Sair para o Dia', ou 'Livro de Emergir Para a Luz' (...)"

“Seu nome original em egípcio, transliterado rw nw prt m hrw, significava ‘Livro de Sair para o Dia’, ou ‘Livro de Emergir Para a Luz’ (…)”

3. “Livro dos Mortos”: data do Império Novo e reúne textos funerários de períodos anteriores (o “Livro das Pirâmides” e o “Livro dos Sarcófagos”), mais trechos originais, elaborados ao longo de um período de mais de mil anos. Seu nome original em egípcio, transliterado rw nw prt m hrw, significava “Livro de Sair para o Dia”, ou “Livro de Emergir Para a Luz”; tal como seus antecessores, porém, corresponde a uma frouxa coletânea de feitiços, fórmulas mágicas, orações, hinos e litanias que eram escritos em rolos de papiro por escribas e adquiridos para serem depositados junto às múmias, no interior dos sarcófagos ou das câmaras mortuárias. Seu objetivo era ajudar o morto na viagem através do Duat, o Mundo Inferior, afastando eventuais perigos que este poderia encontrar em sua jornada.

Entre a XVII e a XXI Dinastias, utilizou-se a chamada “recensão tebana”, dividida em capítulos sem uma ordem determinada, embora a maioria deles possua título; a partir da XXVI Dinastia (século VII a.C.) e até o fim da era ptolemaica, fixou-se de forma definitiva a ordem dos capítulos, na chamada “recensão saíta”. Ainda assim, nunca houve uma versão única ou canônica desse material. Os papiros que sobreviveram contêm uma seleção variada de textos mágicos e religiosos, e, ao que tudo indica, alguns indivíduos encomendavam cópias personalizadas do Livro dos Mortos. Os vários exemplares diferem consideravelmente também em suas ilustrações, que em geral mostravam o falecido em sua jornada no Além. [Mais sobre o Livro dos Mortos, em inglês, aqui, e no documentário do History Channel ao fim desta postagem. Dica da Rosângela Esper – obrigada, Rô!]

Reprodução de um mural na tumba de Seti I (faraó entre 1291-1278 a.C.), representando "as quatro raças" conhecidas dos egípcios: líbios (a oeste), núbios (ao sul), sírios (a leste) e egípcios.

Reprodução de um mural na tumba de Seti I (faraó entre 1291-1278 a.C.), representando “as quatro raças” conhecidas dos egípcios: “Quatro grupos, cada grupo com quatro homens. Os primeiros são reth, os segundos são aamu, os terceiros são nehesu e os quartos são temehu. Os reth são egípcios; os aamu são os habitantes dos desertos do leste e do nordeste do Egito, os nehesu são as raças negras, e os temehu são os líbios de pele clara”. [Do Livro das Portas]

4. Livro das Portas: textos recolhidos em túmulos do Império Novo [em inglês aqui], que narram a passagem de uma alma recém-falecida para o outro mundo, correspondendo à jornada do sol através do submundo durante a noite. A alma deve atravessar uma série de “portas”, cada uma associada a uma deusa diferente, o que requer que o falecido reconheça o caráter específico daquela divindade.

O trecho mais conhecido do Livro das Portas apresenta as quatro raças da humanidade conhecidas dos egípcios (reth, os egípcios; aamu, os asiáticos/sírios; themehu, líbios; e nehesu, núbios) entrando, em procissão, no outro mundo, conforme discutido aqui.

As variações observadas entre essas diferentes fontes revelam as tensões e transformações das crenças egípcias ao longo dos séculos.

Outras fontes escritas são textos de autores gregos e romanos, como os relatos de Heródoto (século V a.C.) e Plutarco (século I d.C.).

História sagrada, historicidade e eternidade

"Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (...). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (...)" | Mais aqui

“Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara (…). Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História (…)” | Mais aqui

“(…) Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o eterno encontro com o mesmo Tempo mítico da origem, santificado pelos deuses, não implicam de modo nenhum uma visão pessimista da vida; ao contrário, é graças a este ‘eterno retorno’ às fontes do sagrado e do real que a existência humana lhe parece salvar-se do nada e da morte.

“A perspectiva muda totalmente quando o sentido da religiosidade cósmica se obscurece. É o que se passa quando, em certas sociedades mais evoluídas, as elites intelectuais se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional. A santificação periódica do Tempo cósmico revela-se então inútil e insignificante. Os deuses já não são acessíveis por meio dos ritmos cósmicos. O significado religioso da repetição dos gestos exemplares é esquecido. Ora, a repetição esvaziada de seu conteúdo conduz necessariamente a uma visão pessimista da existência. Quando deixa de ser um veículo pelo qual se pode restabelecer uma situação primordial e reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, quando é dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico: revela-se como um círculo girando indefinidamente sobre si mesmo, repetindo-se até o infinito. (…)

“A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da época tardia levaram a concepção do Tempo circular aos seus limites extremos. Para citar o belo resumo de H . Ch. Puech: ‘Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao se desenrolar em círculo. Conseqüentemente, todo devir cósmico, assim como a duração deste mundo de geração e corrupção que é o nosso, desenvolver-se-á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclos, no decurso dos quais a mesma realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com uma lei e alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mesma soma de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas também, segundo alguns pensadores do fim da Antiguidade — pitagóricos, estóicos, platônicos —, admite-se que, no interior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, desses aeva, se reproduzem as mesmas situações que se produziram já nos ciclos anteriores e que se reproduzirão nos ciclos subseqüentes – até o infinito. Nenhum acontecimento é único, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo, a condenação e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e anakuklosis, eterno retorno’.

“Quanto às religiões arcaicas e paleorientais, bem como em relação às concepções mítico-filosóficas do Eterno Retorno, tais como foram elaboradas na Índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação importante. Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A idéia do Tempo cíclico é ultrapassada. Iahweh não se manifesta no Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível. Cada nova manifestação de Iahweh na história não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Iahweh contra seu povo, mas não é a mesma que Iahweh exprimira no momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo, o povo escolhido por Iahweh. Assim, o acontecimento histórico ganha um a nova dimensão: torna- se uma teofania.

“O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência .humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Judéia —, mas santificado pela presença do Cristo. Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara — mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia. Para o cristão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses acontecimentos desenrolaram-se na História: já não são fatos que se passaram na origem do Tempo, ‘no começo’. (Acrescentemos porém que para o cristão o Tempo começa de novo com o nascimento do Cristo, porque a encarnação funda uma nova situação do homem no Cosmos.) Em resumo, a História se revela como uma nova dimensão da presença de Deus no mundo. A História volta a ser a História sagrada — tal como foi concebida, dentro de uma perspectiva mítica, nas religiões primitivas e arcaicas.

“O cristianismo conduz a uma teologia e não a uma filosofia da História, pois as intervenções de Deus na história, e sobretudo a Encarnação na pessoa histórica de Jesus Cristo, têm uma finalidade trans-histórica — a salvação do homem.

“Hegel retoma a ideologia judaico-cristã e aplica-a à História universal em sua totalidade: o Espírito universal manifesta se contínua, e unicamente, nos acontecimentos históricos. A História, em sua totalidade, torna- se, pois, uma teofania: tudo o que se passou na História devia passar-se assim, pois assim o quis o Espírito universal. É a via aberta para as diferentes formas de filosofia historicista do século XX. (…) o historicismo é o produto da decomposição do cristianismo: ele concede uma importância decisiva ao acontecimento histórico (o que é uma idéia de origem cristã), mas ao acontecimento histórico como tal, quer dizer, negando-lhe toda possibilidade de revelar uma intenção soteriológica, trans-histórica.”


Eliade, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo : Martins Fontes, 2001. Pp. 92 ss.

Nota

“Sede santos como eu sou Santo”

O conceito de imitatio Dei, “imitação de Deus”, é encontrado em diversas tradições religiosas e filosóficas. Na Grécia, por exemplo, aparece nas reflexões de Platão, Aristóteles (para o qual não só os seres humanos, mas tudo o que existe “busca” o Motor Imóvel) e dos estoicos. Aprofundado nas teologias judaica e cristã, chega a desempenhar um papel central em algumas de suas ramificações.

No judaísmo, o conceito de imitatio Dei, em geral considerado uma mitzvá, é melhor expresso na seguinte passagem do Levítico (Lv 19,2): “sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Uma breve, mas interessante discussão a respeito, no contexto judaico, pode ser lida aqui.

No cristianismo, a imitatio Dei, sob a forma também de imitatio Christi, “imitação de Cristo”, constitui um dos princípios basilares da ética e da espiritualidade tanto do catolicismo romano quanto dos cristãos orientais (Igreja Católica Ortodoxa e antigas Igrejas orientais, como as Igrejas Ortodoxas Síría, Copta, Etíope e Apostólica Armênia), entre os quais é por vezes chamado de “vida em Cristo” – estando intimamente relacionado ao conceito de teósis (do grego theosis), isto é, o processo mediante o qual o indivíduo vai se tornando cada vez mais semelhante a Deus com o passar do tempo.

No protestantismo, enquanto a tradição anglo-saxônica aceita a ideia de imitatio Dei, a luterana prefere falar em Conformitas (em alemão, Nachfolge) em vez de Nachahmung (imitação), com o argumento de que Cristo era singular e não pode nem precisa ser imitado, e sim seguido.

Fonte