Tensões religiosas entre Rá e Osíris (2): crise, ruptura da ordem cósmica, desespero e elaboração

Por Cristiana Serra | Continuação deste post

A visão de mundo egípcia no Antigo Império tinha o faraó, por um lado, como encarnação e mantenedor da maat (a ordem cósmica fundada pelos deuses) e, por outro, como homem exemplar e único destinado a gozar da imortalidade solar — crença fundamentada no culto ao sol, Rá, de quem o rei era ao mesmo tempo filho e manifestação (ba), e no culto aos antepassados mortos, expresso no mito de Osíris e Hórus, seu filho e sucessor, patrono do faraó. Essa dualidade entre o princípio solar, representado por Rá, e o ctônico, representado por Osíris, permaneceu entranhada no espírito egípcio e encontrou, em todos os níveis de sua sociedade e cultura, uma ampla variedade de expressões. Aparece, por exemplo, na intransponível tensão entre o Alto e o Baixo Egitos e no fato de que o Egito será, sempre, um reino composto por dois sub-reinos unidos, sem nunca chegar a uma integração inextrincável, como revelam a dupla coroa egípcia, chamada de “As Duas Potências”, e, mais significativamente em uma cultura em que o sincretismo é uma vocação natural e o processo de identificação e desidentificação entre os deuses se faz e desfaz com fluidez e espontaneidade, o monarca será protegido por duas divindades mantidas teimosamente separadas — Wadjet, a serpente de bote armado e protetora do Baixo Egito, e Nekhbet, a deusa-abutre padroeira do Alto Egito. Em nenhuma imagem, porém, o paradoxo inerente à cultura egípcia desponta com mais clareza do que na não-destruição de Set, que deve ser suplantado a cada micro e macrociclo temporal: diariamente, a cada (re)nascer do sol; anualmente, a cada novo ciclo das estações de cheia, recuada das águas e seca; e na sucessão dos faraós. A cada ciclo temporal se repete a vitória de Hórus sobre Set, a vitória da maat, a ordem estabelecida do cosmos, sobre as forças do caos; ou seja, a recriação do mundo ao emergir do caos das águas primordiais, materializada ao mesmo tempo pela emergência diária do Sol do Duat, o mundo inferior, após sua vitória sobre a serpente Apófis, o arquidemônio, e pela sucessão das cheias do Nilo e a refertilização da terra negra das margens, propiciada por Osíris e sinal de sua vitória sobre Set e a terra vermelha do deserto. Set é vencido, mas jamais destruído, por encarnar, em última instância, a não-ordem (i.e., o caos) cuja existência virtual é inerente à da própria ordem; ontologicamente, a impossibilidade de eliminá-lo é a impossibilidade de extirpar do Ser o não-Ser que é sua consequência lógica.

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Cnum, “o Oleiro Divino”

Cnum como fonte do NIlo

Cnum como fonte do NIlo

Cnum, o deus com cabeça de carneiro, era um dos mais antigos do Egito. Ligado à fonte do Nilo, representava a criatividade e o vigor do rio – e como o rio, em suas cheias anuais, depositava argila e lodo nas margens, acreditava-se que ele criava os corpos das crianças em seu torno, como o oleiro cria as suas peças, e os colocava no ventre de suas mães, ao passo que as almas (ka) lhes seriam insufladas por Heqet, a deusa da fertilidade com cabeça de sapo, no momento do nascimento. Sua atribuição como “Oleiro Divino” e “Aquele que Cria as Coisas de Si Mesmo” se estenderia também aos deuses, aos quais também teria moldado.

Cnum, "o Oleiro Divino"

Cnum, “o Oleiro Divino”

Como terceiro aspecto de Rá, Cnum é o deus do renascimento, da criação e do poente, em geral atribuições de Atum. O culto do deus concentrava-se sobretudo em dois santuários: Elefantina e Esna, ambas locais sagrados. Em Esna, onde o templo data do Período Ptolomaico, Cnum é tido como um deus Criador, sendo chamado de “pai dos pais” – e Neith, deusa (leoa) da guerra Grande Mãe, relacionada às águas primordiais, Criadora e deusa da tecelagem, que teria tecido o mundo inteiro em seu tear, era a “mãe das mães”. Mais tarde, tornaram-se pais de Rá, que também é chamado de Cnum-Rá. (Sobre Elefantina, leia aqui.) Podia ser descrito, ainda, como um deus com cabeça de crocodilo; e, como outro deus de cabeça de carneiro, Amon, relacionado a Min.

Em geral, era representado como um homem com cabeça de carneiro diante de uma roda de oleiro, sobre a qual se veem os corpos das crianças recém-criadas. Como deus da fonte do Nilo, aparece também segurando um frasco de onde jorra um curso d’água. Por fim, ocasionalmente figura em uma imagem composta, como um homem de quatro cabeças – cada uma dela correspondendo a um elemento: Cnum representa a água; Geb, a terra; Xu, o ar; e Osíris, a morte.

Relevo mostrando Cnum (em sua associação com Rá e Amon) e Neith, com cabeça de leoa, em seu templo em Esna.

Relevo mostrando Cnum (em sua associação com Rá e Amon) e Neith, com cabeça de leoa, em seu templo em Esna.

 

Heh, “o deus de milhões de anos”

"Uma das representações mais perfeitas de Heh figura em uma cadeira cerimonial encontrada na tumba de Tutancâmon: de joelhos, sobre o símbolo do ouro, nub, com um ankh no braço e uma haste de palmeira em cada mão; cada uma delas termina em um disco solar com um uraeus. Sobre sua cabeça, o disco solar é protegido por um uraeus duplo."

“Uma das representações mais perfeitas de Heh figura em uma cadeira cerimonial encontrada na tumba de Tutancâmon: de joelhos, sobre o símbolo do ouro, nub, com um ankh no braço e uma haste de palmeira em cada mão; cada uma delas termina em um disco solar com um uraeus. Sobre sua cabeça, o disco solar é protegido por um uraeus duplo.”

Na ogdóade de Hermópolis, Heh era a deificação a eternidade e o espaço infinito (heh significa, em egípcio, “milhão”, e se refere indiscriminadamente ao incomensuravelmente grande tanto em termos de tempo quanto de espaço, dimensões que, no domínio do sagrado, são indistintas; daí o também ser conhecido como o “deus de milhões de anos”). Sua contraparte feminina era Hauhet, a forma feminina de seu nome.

Heh, "o deus de um milhão de anos"

Heh, “o deus de um milhão de anos”

Como os demais princípios ontológicos primordiais da ogdóade, sua forma masculina apresentava-se como um sapo ou homem com cabeça de sapo; sua forma feminina, como uma cobra ou mulher com cabeça de cobra. Em sua representação antropomórfica, ele é mostrado ajoelhado (um joelho erguido), com uma haste de palma em cada mão (ou apenas uma), às vezes com outra no cabelo. Os galhos de palmeira representavam vida longa para os egípcios, pois, na contagem cerimonial do tempo, represetavam os anos passados por intermédio dos entalhes neles gravados – dai o uso da folha de palma como símbolo hieroglífico para “ano”. Outro elemento presente é o shenu na base de cada haste, uma referência à proteção e segurança garantidoras da eternidade.

Heh, "milhão"

Heh, “milhão”

Em seu hieróglifo, Heh aparece ajoelhado, de braços erguidos, em referência ao seu desdobramento em oito deuses Heh da “eternidade”. Agrupados em pares, eles sustentam o céu – e cada um desses pilares proteger uma região celeste, como no Livro da Vaca Celeste. Nesse papel, Heh torna-se uma hipóstase de Xu, o deus do ar que separa o céu (Nut) da terra (Geb). Os quatro pares são percebidos como quatro ventos, mas eram considerados negativos, como que surgidos da boca de Set.

Heh no Papiro de Ani (Pl. 8), fundido com Nun, as águas primordiais: "'Milhões de anos'" é o nome de um, 'Lago Verde' é o do outro; um lago de natrão, e um de salitre; ou (como outros dizem), 'Aquele que Atravessa Milhões de Anos' é o nome de um, 'Grande Lago verde' é o do outro; ou (como outros dizem), 'O Gerador de Milhões de Anos' é o nome de um, 'Lago Verde' é o do outro."

Heh no Papiro de Ani (Pl. 8), fundido com Nun, as águas primordiais: “‘Milhões de anos'” é o nome de um, ‘Lago Verde’ é o do outro; um lago de natrão, e um de salitre; ou (como outros dizem), ‘Aquele que Atravessa Milhões de Anos’ é o nome de um, ‘Grande Lago verde’ é o do outro; ou (como outros dizem), ‘O Gerador de Milhões de Anos’ é o nome de um, ‘Lago Verde’ é o do outro.”

Como deus relativamente abstrato, Heh não possuía nenhum centro de culto ou santuário conhecido; sua veneração girava em torno de simbolismos e crenças pessoais. A imagem do deus e seus elementos iconográficos refletiam o desejo de milhões de anos de vida ou poder, no caso dos governantes; como tal, encontra representação frequente em amuletos, itens de prestígio e iconografia real do fim de Império Antigo em diante.

Uma das representações mais perfeitas de Heh figura em uma cadeira cerimonial encontrada na tumba de Tutancâmon: de joelhos, sobre o símbolo do ouro, nub, com um ankh no braço e uma haste de palmeira em cada mão; cada uma delas termina em um disco solar com um uraeus. Sobre sua cabeça, o disco solar é protegido por um uraeus duplo.

Nefertum, “o Lótus do Sol”

Nefertum na Tumba de Horemheb

Nefertum na Tumba de Horemheb, ao lado de um tyet, o “Cinturão de Ísis”

Nefertum (possivelmente “O Belo que Fecha” ou “Aquele que Não Fecha”) era, na mitologia egípcia, originalmente uma flor de lótus que emergiu das águas primordiais na criação do mundo. Representava tanto a primeira luz do sol quanto o delicioso aroma do lótus azul egípcio, Nymphaea caerulea. Alguns de seus epítetos eram “Aquele que é Belo” e “o Lótus do Sol”; uma versão do Livro dos Mortos diz:

“Erga-se, como Nefertum do lótus azul, até as narinas de Rá, e desponte no horizonte a cada dia.”

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

O lótus azul erguendo-se do seio de seu pai, as negras águas primordiais de Nun, em direção à sua mãe, Nut (o céu)

Nefertum, "o Lótus do Sol"

Nefertum, “o Lótus do Sol”

A sacralidade do lótus, especialmente o azul, para os egípcios, estava relacionada à característica dessa flor que se fecha à noite e afunda na água, ressurgindo e voltando a florescer pela manhã, erguendo-se na ponta de um longo caule como se efetivamente desejasse alcançar o céu. Isso fez dela um símbolo natural do Sol, da criação e do renascimento, em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação: Nefertum emerge, como criança, das negras águas primordiais de seu pai, Nun, e tem o céu, Nut, por mãe. Ao amadurecer, torna-se Rá, o próprio Sol.

Nefertum veio ainda a ser visto como filho do deus-criador Ptá, tendo as deusas Sekhmet (e/ou Bastet) por mãe. Na arte, em geral é descrito como um jovem belo, com o lótus azul na cabeça. Como filho de Sekhmet-Bastet, às vezes apresenta-se com cabeça de leão, ou como um leão ou gato reclinando-se.

Nefertum | Karnak

Nefertum | Karnak

A origem do Homem

"O deus Xu, os oito deuses da Ogdóade e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (...)"

“O deus Xu, os oito deuses Heh e o faraó são retratados sustentando Nut, agora separada de Geb (a terra). Assim surgiram o dia e a noite (…)”

A origem do Homem não é um aspecto relevante nas cosmogonias egípcias. Se as crianças humanas são moldadas em argila pelo deus Cnum e por ele colocadas no ventre de suas mães, os primeiros Homens (em egípcio, erme, “lágrima”) nascem das lágrimas vertidas por Rá-Atum: uma vez criados por Atum, Xu e Tefnut, curiosos sobre as águas primordiais que os cercavam, foram explorá-las e desapareceram na escuridão. Incapaz de suportar sua perda, Atum enviou um mensageiro de fogo, o Olho de Rá, para encontrar seus filhos. As lágrimas de alegria por ele derramadas quando retornaram foram os primeiros seres humanos. Outras versões atribuem as lágrimas a outros aspectos de Rá, como a criança divina Nefertum na cosmogonia de Hermópolis. De todo modo, as lágrimas seriam um prenúncio da imperfeição da natureza humana e da tristeza de suas vidas.

A partir do Primeiro Período Intermediário (~2198-1938 a.C.), quando o Egito dividiu-se em dois e só voltou a se unificar após uma brutal guerra civil, operou-se uma importante transformação religiosa: o direito à vida após a morte, até então exclusivos dos faraós e suas famílias, foi estendido a todos os nobres e oficiais, ou seja, todos os que pudessem pagar pelos ritos necessários para assegurar esse mesmo direito. É dessa época (Império Médio) que datam os textos coligidos sob o título “Livro da Vaca Celeste”, que parece refletir uma elaboração da traumática ruptura da ordem vivenciada pelos egípcios no período anterior.

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Cosmogonia de Elefantina

Cnum, o deus com cabeça de carneiro, molda em seu torno uma criança de barro, auxiliado pela deusa da fertilidade, Heqet

Cnum, o deus com cabeça de carneiro, molda em seu torno uma criança de barro, auxiliado pela deusa da fertilidade, Heqet

Elefantina é o nome grego de uma pequena ilha no Nilo situada junto à Primeira Catarata.

Nesta ilha dominava uma tríade encabeçada por Cnum, deus com cabeça de carneiro, um dos mais antigos do Egito, ligado à fonte do Nilo e que representava a criatividade e o vigor do rio. Como o rio, em suas cheias anuais, depositava argila e lodo nas margens, acreditava-se que ele criava os corpos das crianças em seu torno, como o oleiro cria as suas peças, e os colocava no ventre de suas mães. Sua atribuição como “Oleiro Divino” e “Aquele que Cria as Coisas de Si Mesmo” se estenderia também aos deuses, aos quais também teria moldado.

Cnum tinha por consortes Satet e Anuket (que, segundo outras versões, seriam irmãs ou, respectivamente, esposa e filha do deus). Satet, “Aquela que corre como uma flecha”, era a deificação da correnteza e das cheias do Nilo; Anuket também seria uma personificação do rio.

A Tríade Tebana

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

Tutmés III e a tríade tebana: da esquerda para a direita, Khonsu, Amon e Mut

O nome egípcio de Tebas, cidade do Alto Egito próxima à Núbia, era Waset (“Cidade do cetro”). A designação “Tebas”, de origem grega, é uma corruptela de Ta-opet (ou Ipet-isut, “O mais seleto dos lugares”), nome egípcio da área do complexo de templos da cidade, Karnak – que permaneceu em construção e expansão durante 2 mil anos, em vista da crença egípcia de que o templo precisava ser mantido “vivo”.

Cidade de pouca monta durante boa parte da história egípcia, a partir do Império Novo Tebas adquiriu relevância por ser a sede dos reis fundadores da XVIII Dinastia, responsáveis pela expulsão dos hicsos, primeiros estrangeiros a invadir e dominar o Egito.

Hieróglifo de mut, "mãe": o abutre era, para os egípcios, o máximo da maternidade

Mut, “mãe”

O principal deus da cidade era Amon, associado ao oculto e, em Tebas, demiurgo, retirando essa função de Rá — o que fez de Tebas a primeira cidade criada e, portanto, centro do Mundo e modelo para as demais. Na elaboração tebana, Amon tinha por consorte não Amaunet, mas Mut — palavra que significava “mãe” em egípcio e era, originalmente, um atributo das águas primordiais do cosmos em seu aspecto feminino, Naunet; com o tempo, porém, maternidade e águas cósmicas diferenciaram-se e as duas identidades se separaram. Assim, Mut ganhou contornos de uma deusa criadora, como a Grande Mãe que engendrara o Cosmos. O hieróglifo que representava seu nome e a palavra “mãe” era um abutre — a encarnação suprema da maternidade, visto que, para os egípcios, todas essas aves, por não apresentarem dimorfismo sexual, eram do sexo feminino e concebiam seus filhos fertilizadas pelo vento (Amon), outro conceito partenogênico.

Compondo a tríade central do panteão tebano, dizia-se que Mut havia adotado Montu. Deus antigo (de quem havia um culto anterior em Tebas, como indicam as fundações de um santuário anterior ao templo dedicado ao deus, a nordeste do de Amon) cujo nome significa “nômade”, Montu originalmente era uma manifestação do efeito escaldante do sol, Rá — e, como tal, aparecia sob o epíteto Montu-Rá, divindade suprema do Alto Egito até a ascensão de Amon.

Planta do complexo de templos de Karnak

Planta do complexo de templos de Karnak

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Ver no Google Maps

Vista aérea de Tebas, com a localização do complexo de templos de Karnak e do isheru, lago sagrado de Mut, em forma de lua crescente | Explore a área no Google Maps

Complexo de templos de Karnak | Vídeo da Unesco

Com o tempo, porém, em vista da benignidade de Amon e Mut (e sob a justificativa de que o isheru, o lago sagrado junto ao templo de Mut em Karnak, tinha a forma de uma lua crescente), Montu foi perdendo seus atributos agressivos até acabar sendo substituído como filho de Mut pelo deus lunar Khonsu — cujo templo em Karnak ostenta em uma parede uma cosmogonia em que Khonsu é descrito como a grande serpente que fertiliza o Ovo Cósmico na criação do mundo.

Necrópoles de Tebas (Vale dos Reis
e Vale das Rainhas) | Vídeo da Unesco

Cosmologia Egípcia

 

A deusa do céu, Nut, engole o sol, que viaja através de seu corpo durante a noite para renascer na aurora.

A deusa do céu, Nut, engole o sol, que viaja através de seu corpo durante a noite para renascer na aurora.

A ma’at, a ordem fundamental do universo estabelecida na criação do Mundo, é que distingue o Mundo do caos que o precedeu e o cerca — note-se aqui a coincidência, no âmbito do sagrado, entre espaço e tempo, que constituem uma única dimensão.

O caos que antecede o mundo ordenado existe para além do mundo como uma extensão infinita de água informe, personificada pelo deus Nun. A Terra, personificada pelo deus Geb, é uma extensão plana de terra sobre a qual se arqueia o céu, representado pela deusa Nut. Os dois são separados pela personificação da atmosfera, o deus Xu. A Via Láctea, chamada pelos egípcios de “Nilo nos céus”,  é um rio pelo qual navegam tanto a lua quanto o sol. Assim, o deus-sol Ra cruza o céu, percorrendo o corpo de Nut, e anima o mundo com sua luz. À noite, Rá transpõe o horizonte ocidental e penetra no Duat, o mundo dos mortos, região misteriosa que faz fronteira com a massa sem forma de Nun. Ao amanhecer, emerge do Duat no horizonte leste. A natureza do céu e a localização do Duat são incertas; há textos egípcios que descrevem a viagem do sol noturno por baixo da terra ou dentro do corpo de Nut.

O Sol ergue-se sobre o akhet, retomando a cosmogonia

O Sol ergue-se sobre o akhet, retomando a cosmogonia

Hieróglifo de akhet, no sentido de "horizonte"

Hieróglifo de akhet, no sentido de “horizonte”

As férteis terras do Vale e Delta do Nilo (respectivamente, o Alto e o Baixo Egitos) localizam-se no centro do Mundo. Para além deles ficam os desertos estéreis, associados ao caos que se encontra nas fronteiras do Mundo. Em algum ponto para além deles situa-se o horizonte, o akhet (literalmente, “montanha de luz”; associado às noções de recriação e renascimento, o termo dava nome também à estação das cheias, que abria o ano egípcio com as inundações que restauravam a fertilidade da terra). Lá, duas montanhas, no leste e no oeste, assinalam os pontos onde o sol entra e sai do Duat.

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A Cosmogonia Menfita

Os deuses Ptá e Sekhmet flanqueiam o rei, Ramsés II, que assume o papel de seu filho, Nefertum.

Os deuses Ptá e Sekhmet flanqueiam o rei, Ramsés II, que assume o papel de seu filho, Nefertum.

Na cidade de Mênfis, capital dos faraós da I Dinastia, articulou-se, em torno do deus Ptá, a teologia mais sistemática — e a mais antiga, por se tratar do primeiro centro de poder do Reino Unido.

A teologia menfita hoje é conhecida graças ao texto da Pedra de Shabaka, uma estela de granito que o faraó Shabaka (~700 a.C.) mandou gravar a fim de preservar o texto original, registrado cerca de 2 mil anos antes num papiro guardado nos arquivos de um templo de Ptá e que se encontrava já num avançado grau de deterioração (e, com efeito, estudos recentes mostram que o estilo do texto foi premeditadamente escrito de forma a espelhar uma linguagem arcaica. Infelizmente os habitantes de Mênfis acabaram utilizando a pedra como elemento de um moinho, o que lhe provocou alguns estragos.)

Curiosamente, a cosmogonia egípcia mais antiga é também a mais filosófica, como assinala Eliade (p. 95). Nesse sistema, Ptá, simultaneamente Nun e Naunet, é proclamado o maior dos deuses, criador de tudo: foi ele “quem fez com que os deuses existissem” (ibidem). Atum é apenas o criador do primeiro casal divino e um agente da vontade de Ptá — fruto de seu espírito (o “coração”) e de seu verbo (a “língua”): “Aquele que se manifestou como coração, aquele que se manifestou como língua, sob a aparência de Atum, é Ptá, o muito antigo” (ibidem).

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A Ogdóade (Hemenu) de Hermópolis

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra.

A ogdóade representada nos quatro pares de deuses à esquerda, os masculinos com cabeça de sapo e os femininos, de cobra. | Imagem: Olaf Tausch

Na cidade de Hermópolis (nome dado pelos gregos — que associavam um deus importante na cidade, Tot, ao seu Hermes — à cidade de Khemenu, cujo nome era derivado justamente de sua ogdóade — em egípcio, Hemenu), capital do XV nomo do Alto Egito, dominava um panteão de oito deuses (“ogdóade”) agrupados em quatro pares masculino-feminino. Sua origem variava: por vezes eram apresentados como os primeiros deuses que existiram; em outros casos eram filhos de Atum ou de Xu. Juntos, podem ser entendidos, de todo modo, aspectos do estado fundamental do Ser, aqueles que são o que sempre foram — daí a pouca diferenciação, além do gênero, entre as entidades de cada casal. Com efeito, os nomes das quatro deusas não passam das formas femininas das denominações masculinas, e vice-versa. Ou seja: cada par representa os aspectos masculino e feminino dos seguintes elementos primordiais, a partir dos quais tudo havia se originado:

– Nun e Naunet: as águas primordiais, o oceano infindo primordial, a cheia primeva do Nilo, o caos;
– Heh e Hehet: a eternidade e o espaço infinito (heh significa, em egípcio, “milhão”, e se refere indiscriminadamente ao incomensuravelmente grande tanto em termos de tempo quanto de espaço, dimensões que, no domínio do sagrado, são indistintas);
– Kek e Kauket: as trevas (em egípcio, “o que havia antes da luz”, ou “o portador da luz”);
– Amon e Amaunet: o ar ou o vento em sua característica de invisibilidade, e, nesse sentido do invisível, o oculto.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de rã e as femininas, de cobra.

A ogdóade de Hermópolis: as entidades masculinas com cabeça de sapo e as femininas, de cobra.

As entidades masculinas desse panteão eram representadas como homens com cabeça de sapo (símbolo, para os egípcios, de vida e fertilidade, já que milhões deles nasciam após cada cheia anual do Nilo) e as femininas, como mulheres com cabeça de serpente. A interação entre eles deu origem a uma nova entidade, que, ao se abrir, revelou em seu interior Rá, o disco flamejante do Sol, que, após um intervalo de repouso, criou, com os deuses elementares, todas as demais coisas do Mundo.

Há duas variantes acerca da entidade de onde irrompeu Rá. Na primeira, da interação dos deuses teria emergido das águas primordiais um monte de lodo sobre o qual uma ave celestial — um ganso (ave de Amon) cósmico, ou um íbis (ave associada a Tot), ou ainda um falcão (Hórus) — veio pôr um ovo, do qual nasceu Rá.

Na segunda versão, quando, mais tarde, Atum veio a ser assimilado a Rá como Atum-Rá, adotou-se a crença de que Atum surgira de um botão de lótus azul (uma das variantes da cosmogonia da enéade). O lótus teria emergido das águas em botão, após a interação dos quatro pares de deuses; ou das águas do oceano primordial emergira uma ilha, onde mais tarde seria construída Hermópolis, e nela havia um poço, no qual flutuava um lótus; as divindades masculinas ejacularam sobre ele e o fecundaram. A flor fechou-se durante a noite; quando se abriu, na manhã seguinte, revelou o deus-escaravelho, Khépri, o Sol Nascente, que se transformou em um menino que chorava — Nefertum, de cujas lágrimas se formariam as criaturas da Terra.