Tensões religiosas entre Rá e Osíris (2): crise, ruptura da ordem cósmica, desespero e elaboração

Por Cristiana Serra | Continuação deste post

A visão de mundo egípcia no Antigo Império tinha o faraó, por um lado, como encarnação e mantenedor da maat (a ordem cósmica fundada pelos deuses) e, por outro, como homem exemplar e único destinado a gozar da imortalidade solar — crença fundamentada no culto ao sol, Rá, de quem o rei era ao mesmo tempo filho e manifestação (ba), e no culto aos antepassados mortos, expresso no mito de Osíris e Hórus, seu filho e sucessor, patrono do faraó. Essa dualidade entre o princípio solar, representado por Rá, e o ctônico, representado por Osíris, permaneceu entranhada no espírito egípcio e encontrou, em todos os níveis de sua sociedade e cultura, uma ampla variedade de expressões. Aparece, por exemplo, na intransponível tensão entre o Alto e o Baixo Egitos e no fato de que o Egito será, sempre, um reino composto por dois sub-reinos unidos, sem nunca chegar a uma integração inextrincável, como revelam a dupla coroa egípcia, chamada de “As Duas Potências”, e, mais significativamente em uma cultura em que o sincretismo é uma vocação natural e o processo de identificação e desidentificação entre os deuses se faz e desfaz com fluidez e espontaneidade, o monarca será protegido por duas divindades mantidas teimosamente separadas — Wadjet, a serpente de bote armado e protetora do Baixo Egito, e Nekhbet, a deusa-abutre padroeira do Alto Egito. Em nenhuma imagem, porém, o paradoxo inerente à cultura egípcia desponta com mais clareza do que na não-destruição de Set, que deve ser suplantado a cada micro e macrociclo temporal: diariamente, a cada (re)nascer do sol; anualmente, a cada novo ciclo das estações de cheia, recuada das águas e seca; e na sucessão dos faraós. A cada ciclo temporal se repete a vitória de Hórus sobre Set, a vitória da maat, a ordem estabelecida do cosmos, sobre as forças do caos; ou seja, a recriação do mundo ao emergir do caos das águas primordiais, materializada ao mesmo tempo pela emergência diária do Sol do Duat, o mundo inferior, após sua vitória sobre a serpente Apófis, o arquidemônio, e pela sucessão das cheias do Nilo e a refertilização da terra negra das margens, propiciada por Osíris e sinal de sua vitória sobre Set e a terra vermelha do deserto. Set é vencido, mas jamais destruído, por encarnar, em última instância, a não-ordem (i.e., o caos) cuja existência virtual é inerente à da própria ordem; ontologicamente, a impossibilidade de eliminá-lo é a impossibilidade de extirpar do Ser o não-Ser que é sua consequência lógica.

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Tensões religiosas entre Rá e Osíris (1): a divinização do faraó no Antigo Império

Por Cristiana Serra

A unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3100 a.C., marcando o início dos tempos dinásticos e a fundação do Reino Unido, equivale a uma cosmogonia. Naquele primeiro momento, a teologia dominante era representada pela tríade de MênfisPtá, Sekhmet, Nefertum. A natureza do poder criativo de Ptá, o deus-artesão, se revela de maneira significativa em seus dois principais sincretismos no Antigo Império — com o deus-falcão mumificado Sokar-Osíris e com Tatenen, divindade andrógina da natureza e deus do monte primordial, que se ergue das águas primordiais impulsionado pelo fogo subterrâneo — e pelo cetro triplo que expressa os três poderes criativos do deus: o cetro was (poder), o ankh (vida); e o pilar djed (estabilidade). Esse poder masculino da obscuridade, essencialmente ctônico (pois ligado ao deus morto Osíris, que por sua descida às profundezas dos mortos assegura a fertilidade da terra), toma por consorte a expressão de uma potência feminina solar em sua vertente destruidora e devoradora, Sekhmet. Dessa confluência entre criação e destruição brota  Nefertum, o Lótus do Sol, a Criança Divina que é o Sol em seu eterno ciclo de morrer para reemergir das águas primordiais e, assim, restaurar a criação. Como o lótus azul sagrado, o jovem deus encarna a criação e o renascimento, emergindo das negras águas primordiais (seu pai, Nun) e elevando-se em direção ao céu (Nut, sua mãe) — e assim integra as alturas luminosas às profundezas obscuras.

Na cosmogonia menfita, Atum, aquele que finaliza, é a encarnação do verbo de Ptá, o agente de sua vontade; mas seu sincretismo com Rá (o Sol em seu ápice) engendra o singular paradoxo que vai permear toda a história da religião egípcia: o deus-sol, oposto ao ctônico Ptá, é, dizem os textos teológicos de Mênfis, alimentado pela essência divina deste para vir a existir (ou seja, para nascer). Assim, Ptá passa a ser simbolizado por dois pássaros com cabeças humanas adornadas com discos solares: ele é as almas (ba) de Rá.

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Quadro cronológico do Antigo Egito

Dinastias e períodos históricos egípcios na Antiguidade

Dinastias e períodos históricos egípcios na Antiguidade (clique na imagem para ampliar)

Fontes e referências sobre religião e mitologia do Antigo Egito

Este detalhe, extraído doPapiro de Hunefer (c. 1275 a.C.), mostra o coração do escriba  Hunefer sendo pesado, na balança da deusa Maat, contra a pena da verdade, por Anúbis, o deus de cabeça de chacal. O deus Tot, de cabeça de íbis, escriba dos deuses, registra o resultado. Se seu coração tiver exatamente o mesmo peso da pena, Hunefer terá permissão para passar para a vida além-morte. Se não, será comido pelo quimérico Ammit, misto de crocodilo, leão e hipopótamo.

Este detalhe, extraído do Papiro de Hunefer (c. 1275 a.C.), mostra o coração do escriba Hunefer sendo pesado, na balança da deusa Maat, contra a pena da verdade, por Anúbis, o deus de cabeça de chacal. O deus Tot, de cabeça de íbis, escriba dos deuses, registra o resultado. Se seu coração tiver exatamente o mesmo peso da pena, Hunefer terá permissão para passar para a vida além-morte. Se não, será comido pelo quimérico Ammit, misto de crocodilo, leão e hipopótamo.

A religião egípcia não contava com um livro sagrado nem um conjunto de mandamentos, e o que dela sabemos nos é revelado por fragmentos e alusões indiretas recolhidos de fontes que raramente contêm relatos completos de mitos, tais como textos literários (em histórias que iam do humor à alegoria), registros dos feitos dos faraós e materiais religiosos como hinos, textos e fórmulas rituais e funerários e decoração de templos. Dessas fontes, as principais são:

1. “Livro das Pirâmides”: compilação de fórmulas mágicas e hinos escritos nas paredes dos corredores e câmaras funerárias das pirâmides de Saccara (dos faraós Unas, Teti, Pepi I, Merenré e Pepi II), a fim de proteger o faraó e garantir sua sobrevivência no Além — na época, a possibilidade de uma vida depois da morte era acessível apenas aos reis. Embora tenham sido escritos no tempo da V e VI Dinastias (~2350-2175 a.C.), sua composição provavelmente data de muito antes, ~3000 a.C., o que faz deles os mais antigos textos sacros conhecidos. [Tradução inglesa aqui]

2. “Livro dos Sarcófagos”: A partir da VII Dinastia houve uma “democratização” da possibilidade de ascender a uma vida no Além, que deixou de ser reservada apenas ao soberano e estendeu-se também aos nobres e altos funcionários, primeiro, para progressivamente generalizar-se para a população como um todo. A partir do Primeiro Período Intermediário, e sobretudo durante o Império Médio, os textos usados pelos reis foram modificados; ao mesmo tempo, surgiram novos textos, ainda com a função de proteger o defunto no Além e prover as suas necessidades. Os textos passaram a ser escritos na madeira do interior dos sarcófagos, daí o nome dessa compilação — que, contudo, inclui também inscrições realizadas em vasos canópicos, estelas, paredes dos túmulos e papiros e compreende mais de mil fórmulas conhecidas.

"Seu nome original em egípcio, transliterado rw nw prt m hrw, significava 'Livro de Sair para o Dia', ou 'Livro de Emergir Para a Luz' (...)"

“Seu nome original em egípcio, transliterado rw nw prt m hrw, significava ‘Livro de Sair para o Dia’, ou ‘Livro de Emergir Para a Luz’ (…)”

3. “Livro dos Mortos”: data do Império Novo e reúne textos funerários de períodos anteriores (o “Livro das Pirâmides” e o “Livro dos Sarcófagos”), mais trechos originais, elaborados ao longo de um período de mais de mil anos. Seu nome original em egípcio, transliterado rw nw prt m hrw, significava “Livro de Sair para o Dia”, ou “Livro de Emergir Para a Luz”; tal como seus antecessores, porém, corresponde a uma frouxa coletânea de feitiços, fórmulas mágicas, orações, hinos e litanias que eram escritos em rolos de papiro por escribas e adquiridos para serem depositados junto às múmias, no interior dos sarcófagos ou das câmaras mortuárias. Seu objetivo era ajudar o morto na viagem através do Duat, o Mundo Inferior, afastando eventuais perigos que este poderia encontrar em sua jornada.

Entre a XVII e a XXI Dinastias, utilizou-se a chamada “recensão tebana”, dividida em capítulos sem uma ordem determinada, embora a maioria deles possua título; a partir da XXVI Dinastia (século VII a.C.) e até o fim da era ptolemaica, fixou-se de forma definitiva a ordem dos capítulos, na chamada “recensão saíta”. Ainda assim, nunca houve uma versão única ou canônica desse material. Os papiros que sobreviveram contêm uma seleção variada de textos mágicos e religiosos, e, ao que tudo indica, alguns indivíduos encomendavam cópias personalizadas do Livro dos Mortos. Os vários exemplares diferem consideravelmente também em suas ilustrações, que em geral mostravam o falecido em sua jornada no Além. [Mais sobre o Livro dos Mortos, em inglês, aqui, e no documentário do History Channel ao fim desta postagem. Dica da Rosângela Esper – obrigada, Rô!]

Reprodução de um mural na tumba de Seti I (faraó entre 1291-1278 a.C.), representando "as quatro raças" conhecidas dos egípcios: líbios (a oeste), núbios (ao sul), sírios (a leste) e egípcios.

Reprodução de um mural na tumba de Seti I (faraó entre 1291-1278 a.C.), representando “as quatro raças” conhecidas dos egípcios: “Quatro grupos, cada grupo com quatro homens. Os primeiros são reth, os segundos são aamu, os terceiros são nehesu e os quartos são temehu. Os reth são egípcios; os aamu são os habitantes dos desertos do leste e do nordeste do Egito, os nehesu são as raças negras, e os temehu são os líbios de pele clara”. [Do Livro das Portas]

4. Livro das Portas: textos recolhidos em túmulos do Império Novo [em inglês aqui], que narram a passagem de uma alma recém-falecida para o outro mundo, correspondendo à jornada do sol através do submundo durante a noite. A alma deve atravessar uma série de “portas”, cada uma associada a uma deusa diferente, o que requer que o falecido reconheça o caráter específico daquela divindade.

O trecho mais conhecido do Livro das Portas apresenta as quatro raças da humanidade conhecidas dos egípcios (reth, os egípcios; aamu, os asiáticos/sírios; themehu, líbios; e nehesu, núbios) entrando, em procissão, no outro mundo, conforme discutido aqui.

As variações observadas entre essas diferentes fontes revelam as tensões e transformações das crenças egípcias ao longo dos séculos.

Outras fontes escritas são textos de autores gregos e romanos, como os relatos de Heródoto (século V a.C.) e Plutarco (século I d.C.).

Os primórdios do Estado egípcio: contextualização histórica, geográfica e social

Esta paleta de ardósia celebra as proezas do faraó Narmer, que governou o Alto Egito por volta de 3100 a.C. e contribuiu de maneira significativa para a unificação do reino. Acompanhado de seu carregador de sandálias e usando a hedjet, a coroa alongada do Alto Egito, Narmer prepara-se para golpear o inimigo caído; o deus-falcão Hórus, patrono dos faraós, mantém um prisioneiro amarrado entre caules de papiro, simbolizando a submissão do Baixo Egito.

Esta paleta de ardósia celebra as proezas do faraó Narmer, que governou o Alto Egito por volta de 3100 a.C. e contribuiu de maneira significativa para a unificação do reino. Acompanhado de seu carregador de sandálias e usando o hedjet, a coroa alongada do Alto Egito, Narmer prepara-se para golpear o inimigo caído; o deus-falcão Hórus, patrono dos faraós, mantém um prisioneiro amarrado entre caules de papiro, simbolizando a submissão do Baixo Egito. | Fonte: Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. P. 61

A história do Egito propriamente dito tem como marco inicial a consolidação dos reinos do Alto e do Baixo Egitos e a ascensão ao poder da I Dinastia de faraós, por volta de 3000 a.C., com capital em Mênfis.

Nos milênios que antecederam a formação do assim chamado “Reino Unido”, os grupos de caçadores-coletores que exploravam a fartura do Nilo — peixes e aves abundantes, antílopes que frequentavam os baixios e a cevada silvestre que se espalhava pela rica camada aluvial deixada pela cheia anual do rio — mantiveram seu estilo de vida sem maiores alterações. A partir de cerca de 5200 a.C., porém (aproximadamente 2 mil anos depois de os habitantes da Mesopotâmia começarem a cultivar a terra), uma lenta onda migratória foi modificando a face do vale do Nilo. Parte dos novos colonos, oriundos do Crescente Fértil, trouxeram consigo gado e variedades domésticas de trigo e cevada. Sua contribuição, incrementada pela gradual intensificação do comércio com a Mesopotâmia, levou à incorporação também dos veículos com rodas, das técnicas de irrigação (que, como na Mesopotâmia, seria responsável pela geração de um excedente agrícola e do espírito de disciplina coletiva), construção com tijolos e fabricação de barcos, e sobretudo da escrita, que irromperia bruscamente, sem antecedentes, nos primórdios da I Dinastia.

Quando as águas recuavam após as cheias anuais, que chegavam ao Vale do Nilo — uma fenda de 800 km que corta o Saara da Primeira Catarata aos pântanos do Delta do rio, conhecida como Alto Egito — pouco depois do solstício de verão (no hemisfério norte, 21 de junho), tinham início os trabalhos de irrigação e plantio. O sistema criou vínculos comunais ao longo de todo o rio, e com o tempo grupos de aldeias rurais foram se organizando em províncias conhecidas como “nomos”, governadas pelos “nomarcas”. Com poucas barreiras geográficas e políticas a superar, os nomos do Alto Egito não tardaram a se unificar sob um mesmo governante, num processo iniciado por volta de 3500 a.C. e encerrado em um ou dois séculos.

Já nas terras alagadas do delta, chamado de Baixo Egito, onde a maioria das aldeias permanecia isolada durante todo o ano, as condições de vida eram mais adversas. A tradição egípcia atribui a um primeiro soberano divinizado, Menés, a unificação do reino e a fundação do Estado — proezas que provavelmente representam realizações de vários governantes entre 3200 e 3000 a.C.. Para celebrar seu triunfo, Menés teria erguido sua capital, Mênfis, numa área protegida das cheias do Nilo e próxima ao ponto onde se origina o delta. Foi na Mênfis “das brancas muralhas” que se celebrou, pela primeira vez, a cerimônia da coroação; lá, por mais de três milênios, os faraós seriam coroados, num ritual cujo ápice seria uma reprodução dos procedimentos inaugurados por Menés. “Não era uma comemoração dos feitos de Menés, mas a renovação da fonte criadora presente no acontecimento original”, salienta Eliade [1, p. 93, grifo do autor].

Mapa do Antigo Egito, com algumas das principais cidades e referências geográficas | Via

Mapa do Antigo Egito, com algumas das principais cidades e referências geográficas | Via

A palavra “faraó” – popularizada a partir da versão grega da Bíblia, onde aparece sob a forma pharâo – é derivada da expressão egípcia per-aá, “a grande casa”, em referência ao palácio real, sede do poder, e não foi utilizada pelos egípcios para se referirem ao soberano durante a maior parte da sua história; em vez disso, preferiam termos como nesu (“rei”) ou neb (“senhor”). Não obstante, seria tarefa dos faraós estabelecer e sustentar a supremacia de sua própria casa sobre as demais. Assim, à primeira dinastia se seguiriam outras 29 (com mudanças de linhagem ocasionadas pela ausência de herdeiros ou por revoluções) até a conquista do Egito por Alexandre Magno, em 332 a.C.. O novo Estado se desenvolveria em relativo isolamento: rodeado por amplidões desérticas a leste e a oeste, por uma sequência de seis cataratas ao sul e pelo Mediterrâneo ao norte, o primeiro grande perigo proveniente do exterior seriam os hicsos, cuja irrupção se daria somente em torno de 1674 a.C.. A fartura proporcionada pelo Nilo dispensava os egípcios de se dedicar a conquistas expansionistas; a regularidade das cheias estimulava o planejamento agrícola e instilou na cultura um senso de harmonia e estabilidade. “Seu povo não tinha necessidade de se aglomerar em cidades fortificadas para se defender. Com efeito, os egípcios demoraram mesmo a desenvolver núcleos urbanos de qualquer tipo — o que primeiro chegou mais perto de cidades foram as cidades dos mortos, com ruas de túmulos, às vezes imitando casinhas dispostas em paralelas e transversais” [2]; sua população consistia em uma vasta massa rural. Por outro lado, a navegabilidade do rio permitiu ao soberano governar o país com uma administração cada vez mais centralizada. Toda a terra, bem como tudo o que ela produzia, pertencia ao faraó, que distribuía o direito de ocupá-la e explorá-la em troca de uma parte da riqueza dela advinda; como divindade que era, cumpria-lhe não só controlar, com seus poderes mágicos, o rio e a terra, mas também comandar as empreitadas coletivas de construção de diques e canais, e todo egípcio estava obrigado a atender à sua convocação para quaisquer tarefas que seu rei-deus julgasse necessárias. Também o comércio era monopólio seu; “em contraste com a Mesopotâmia, onde logo se constituíra uma classe mercantil, a palavra ‘mercador’ nem sequer existia no Egito até um momento avançado do segundo milênio” [3, p. 79]. O monarca encarnava ainda a fonte de toda a justiça e, como não havia um código de leis nem jurisprudência, sua palavra era lei.

Na prática, porém, o faraó precisava delegar a maioria de suas atribuições, e assim, “num dos Estados mais centralizados que já surgiram, desenvolveu-se uma das burocracias mais abrangentes da história”. “Todas as obras do faraó passam pelas minhas mãos”, orgulhava-se um nomarca. “Não fiz mal a nenhuma filha de um homem pobre, não oprimi nenhuma viúva. Não castiguei nenhum agricultor, nem expulsei nenhum pastor. Não havia nenhum miserável em torno de mim, nenhum homem faminto durante meu governo” [3, p. 64]. Esse seria o ideal de governo; na prática, todavia, a maior preocupação das autoridades era a coleta de impostos, não o bem-estar do povo. O ano egípcio, dividido em 12 meses de 30 dias (os 5 dias restantes eram dedicados ao festival de Ano Novo, em que se celebrava o nascimento dos deuses Osíris, Hórus, Ísis, Set e Néftis), tinha início em 19 de julho, quando a estrela mais brilhante, Sírio, surge no leste bem diante do sol — evento que precede em alguns dias a cheia anual do Nilo. Durante as cheias (estação chamada pelos egípcios de akhet), que começavam em julho e chegavam ao auge em torno de setembro, os camponeses podiam ser convocados para trabalhar nas construções de túmulos e templos; na estação de recuo das águas, chamada de “emergência” (peret), voltavam aos campos para abrir canais, preparar a terra e semeá-la; por fim, na última das três estações do ano, a da seca e da colheita (shemu), que tinha início em fevereiro, os cereais eram debulhados e, com o que restava após o recolhimento dos tributos, assavam pão e fermentavam cerveja, a base da dieta egípcia.

“É de notar que as mais importantes criações sociopolíticas e culturais se tenham verificado durante as primeiras dinastias”, sublinha Eliade [1, p. 93]. “Foram essas criações que fixaram os modelos para os 15 séculos subsequentes. Depois da V Dinastia (~2500-2300 a.C.), quase nada de importante foi acrescentado ao patrimônio cultural”, num “imobilismo” que caracterizaria a civilização egípcia e guardaria estreita ligação com os valores religiosos daquele povo.


[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.
[2] Nuttgens, P. The Story of Architecture. Londres: Phaidon Press, 1997. 352 p.
[3] Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. Pp. 55-86.