Os primórdios do Estado egípcio: contextualização histórica, geográfica e social

Esta paleta de ardósia celebra as proezas do faraó Narmer, que governou o Alto Egito por volta de 3100 a.C. e contribuiu de maneira significativa para a unificação do reino. Acompanhado de seu carregador de sandálias e usando a hedjet, a coroa alongada do Alto Egito, Narmer prepara-se para golpear o inimigo caído; o deus-falcão Hórus, patrono dos faraós, mantém um prisioneiro amarrado entre caules de papiro, simbolizando a submissão do Baixo Egito.

Esta paleta de ardósia celebra as proezas do faraó Narmer, que governou o Alto Egito por volta de 3100 a.C. e contribuiu de maneira significativa para a unificação do reino. Acompanhado de seu carregador de sandálias e usando o hedjet, a coroa alongada do Alto Egito, Narmer prepara-se para golpear o inimigo caído; o deus-falcão Hórus, patrono dos faraós, mantém um prisioneiro amarrado entre caules de papiro, simbolizando a submissão do Baixo Egito. | Fonte: Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. P. 61

A história do Egito propriamente dito tem como marco inicial a consolidação dos reinos do Alto e do Baixo Egitos e a ascensão ao poder da I Dinastia de faraós, por volta de 3000 a.C., com capital em Mênfis.

Nos milênios que antecederam a formação do assim chamado “Reino Unido”, os grupos de caçadores-coletores que exploravam a fartura do Nilo — peixes e aves abundantes, antílopes que frequentavam os baixios e a cevada silvestre que se espalhava pela rica camada aluvial deixada pela cheia anual do rio — mantiveram seu estilo de vida sem maiores alterações. A partir de cerca de 5200 a.C., porém (aproximadamente 2 mil anos depois de os habitantes da Mesopotâmia começarem a cultivar a terra), uma lenta onda migratória foi modificando a face do vale do Nilo. Parte dos novos colonos, oriundos do Crescente Fértil, trouxeram consigo gado e variedades domésticas de trigo e cevada. Sua contribuição, incrementada pela gradual intensificação do comércio com a Mesopotâmia, levou à incorporação também dos veículos com rodas, das técnicas de irrigação (que, como na Mesopotâmia, seria responsável pela geração de um excedente agrícola e do espírito de disciplina coletiva), construção com tijolos e fabricação de barcos, e sobretudo da escrita, que irromperia bruscamente, sem antecedentes, nos primórdios da I Dinastia.

Quando as águas recuavam após as cheias anuais, que chegavam ao Vale do Nilo — uma fenda de 800 km que corta o Saara da Primeira Catarata aos pântanos do Delta do rio, conhecida como Alto Egito — pouco depois do solstício de verão (no hemisfério norte, 21 de junho), tinham início os trabalhos de irrigação e plantio. O sistema criou vínculos comunais ao longo de todo o rio, e com o tempo grupos de aldeias rurais foram se organizando em províncias conhecidas como “nomos”, governadas pelos “nomarcas”. Com poucas barreiras geográficas e políticas a superar, os nomos do Alto Egito não tardaram a se unificar sob um mesmo governante, num processo iniciado por volta de 3500 a.C. e encerrado em um ou dois séculos.

Já nas terras alagadas do delta, chamado de Baixo Egito, onde a maioria das aldeias permanecia isolada durante todo o ano, as condições de vida eram mais adversas. A tradição egípcia atribui a um primeiro soberano divinizado, Menés, a unificação do reino e a fundação do Estado — proezas que provavelmente representam realizações de vários governantes entre 3200 e 3000 a.C.. Para celebrar seu triunfo, Menés teria erguido sua capital, Mênfis, numa área protegida das cheias do Nilo e próxima ao ponto onde se origina o delta. Foi na Mênfis “das brancas muralhas” que se celebrou, pela primeira vez, a cerimônia da coroação; lá, por mais de três milênios, os faraós seriam coroados, num ritual cujo ápice seria uma reprodução dos procedimentos inaugurados por Menés. “Não era uma comemoração dos feitos de Menés, mas a renovação da fonte criadora presente no acontecimento original”, salienta Eliade [1, p. 93, grifo do autor].

Mapa do Antigo Egito, com algumas das principais cidades e referências geográficas | Via

Mapa do Antigo Egito, com algumas das principais cidades e referências geográficas | Via

A palavra “faraó” – popularizada a partir da versão grega da Bíblia, onde aparece sob a forma pharâo – é derivada da expressão egípcia per-aá, “a grande casa”, em referência ao palácio real, sede do poder, e não foi utilizada pelos egípcios para se referirem ao soberano durante a maior parte da sua história; em vez disso, preferiam termos como nesu (“rei”) ou neb (“senhor”). Não obstante, seria tarefa dos faraós estabelecer e sustentar a supremacia de sua própria casa sobre as demais. Assim, à primeira dinastia se seguiriam outras 29 (com mudanças de linhagem ocasionadas pela ausência de herdeiros ou por revoluções) até a conquista do Egito por Alexandre Magno, em 332 a.C.. O novo Estado se desenvolveria em relativo isolamento: rodeado por amplidões desérticas a leste e a oeste, por uma sequência de seis cataratas ao sul e pelo Mediterrâneo ao norte, o primeiro grande perigo proveniente do exterior seriam os hicsos, cuja irrupção se daria somente em torno de 1674 a.C.. A fartura proporcionada pelo Nilo dispensava os egípcios de se dedicar a conquistas expansionistas; a regularidade das cheias estimulava o planejamento agrícola e instilou na cultura um senso de harmonia e estabilidade. “Seu povo não tinha necessidade de se aglomerar em cidades fortificadas para se defender. Com efeito, os egípcios demoraram mesmo a desenvolver núcleos urbanos de qualquer tipo — o que primeiro chegou mais perto de cidades foram as cidades dos mortos, com ruas de túmulos, às vezes imitando casinhas dispostas em paralelas e transversais” [2]; sua população consistia em uma vasta massa rural. Por outro lado, a navegabilidade do rio permitiu ao soberano governar o país com uma administração cada vez mais centralizada. Toda a terra, bem como tudo o que ela produzia, pertencia ao faraó, que distribuía o direito de ocupá-la e explorá-la em troca de uma parte da riqueza dela advinda; como divindade que era, cumpria-lhe não só controlar, com seus poderes mágicos, o rio e a terra, mas também comandar as empreitadas coletivas de construção de diques e canais, e todo egípcio estava obrigado a atender à sua convocação para quaisquer tarefas que seu rei-deus julgasse necessárias. Também o comércio era monopólio seu; “em contraste com a Mesopotâmia, onde logo se constituíra uma classe mercantil, a palavra ‘mercador’ nem sequer existia no Egito até um momento avançado do segundo milênio” [3, p. 79]. O monarca encarnava ainda a fonte de toda a justiça e, como não havia um código de leis nem jurisprudência, sua palavra era lei.

Na prática, porém, o faraó precisava delegar a maioria de suas atribuições, e assim, “num dos Estados mais centralizados que já surgiram, desenvolveu-se uma das burocracias mais abrangentes da história”. “Todas as obras do faraó passam pelas minhas mãos”, orgulhava-se um nomarca. “Não fiz mal a nenhuma filha de um homem pobre, não oprimi nenhuma viúva. Não castiguei nenhum agricultor, nem expulsei nenhum pastor. Não havia nenhum miserável em torno de mim, nenhum homem faminto durante meu governo” [3, p. 64]. Esse seria o ideal de governo; na prática, todavia, a maior preocupação das autoridades era a coleta de impostos, não o bem-estar do povo. O ano egípcio, dividido em 12 meses de 30 dias (os 5 dias restantes eram dedicados ao festival de Ano Novo, em que se celebrava o nascimento dos deuses Osíris, Hórus, Ísis, Set e Néftis), tinha início em 19 de julho, quando a estrela mais brilhante, Sírio, surge no leste bem diante do sol — evento que precede em alguns dias a cheia anual do Nilo. Durante as cheias (estação chamada pelos egípcios de akhet), que começavam em julho e chegavam ao auge em torno de setembro, os camponeses podiam ser convocados para trabalhar nas construções de túmulos e templos; na estação de recuo das águas, chamada de “emergência” (peret), voltavam aos campos para abrir canais, preparar a terra e semeá-la; por fim, na última das três estações do ano, a da seca e da colheita (shemu), que tinha início em fevereiro, os cereais eram debulhados e, com o que restava após o recolhimento dos tributos, assavam pão e fermentavam cerveja, a base da dieta egípcia.

“É de notar que as mais importantes criações sociopolíticas e culturais se tenham verificado durante as primeiras dinastias”, sublinha Eliade [1, p. 93]. “Foram essas criações que fixaram os modelos para os 15 séculos subsequentes. Depois da V Dinastia (~2500-2300 a.C.), quase nada de importante foi acrescentado ao patrimônio cultural”, num “imobilismo” que caracterizaria a civilização egípcia e guardaria estreita ligação com os valores religiosos daquele povo.


[1] Eliade, M. História das crenças e das ideias religiosas – Vol. 1. Rio de Janeiro : Zahar, 2010. Pp. 92-117.
[2] Nuttgens, P. The Story of Architecture. Londres: Phaidon Press, 1997. 352 p.
[3] Coleção História em Revista. 3000-1500 a.C.: A era dos reis divinos. Rio de Janeiro : Cidade Cultural, 1990. Pp. 55-86.